Neste dia 19 de agosto, Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro se solidariza com a população em situação de rua.
Nesta mesma data, no ano de 2004, sete pessoas em situação de rua foram brutalmente assassinadas enquanto dormiam na região da Praça da Sé, em São Paulo, e outras oito pessoas ficaram feridas. Conhecido como “massacre da Sé”, o caso teve repercussão internacional e a data foi escolhida para marcar o “Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua”, visando conscientizar a sociedade e trazer visibilidade para os direitos que devem ser garantidos a essa população.
Este é um dia de muita luta para manter os direitos que foram arduamente conquistados e de enfrentamento aos retrocessos e violações que estão sendo perpetrados. Diante do atual contexto pandêmico, vemos mais uma vez, o movimento de recolhimento compulsório se articular, a exemplo do aconteceu em 2011, 2014 e 2016 por ocasião dos grandes eventos que ocorreram no Rio de Janeiro. Esta política de cunho higienista e pautada em preconceitos de diversas ordens sustentadas por uma mentalidade de base eugênica, representando forte violação dos direitos da população em situação de rua, lhe roubando a autonomia e a dignidade.
Além disso, com a Covid-19 como justificativa, a internação compulsória com o objetivo de “tratar” qualquer pessoa em situação de rua nada mais é que uma “cortina de fumaça” para ocultar o ideário higienista destas ações.
Esta política que retoma os “tratamentos” de cunho moral já abandonados pelos profissionais de saúde mental ao longo da história pretende retroceder os diversos avanços conquistados por meio da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216 de 2001), da Política Nacional da População em Situação de Rua (Decreto nº7053/2009), da Lei Municipal da População em Situação de Rua (Lei nº 6350/2018) e da resolução que cria e regulamenta o protocolo do serviço especializado em abordagem social no município do Rio de Janeiro (Nº 64/2016),trazendo o conceito de abstinência e retirada da autonomia individual como ideia central. Precisamos considerar que há grupos populacionais não apenas no Brasil mas no mundo inteiro que não tem o interesse de interromper seus usos de drogas ou não podem por diferentes fatores, ainda que já tenham sido submetidos às diferentes metodologias de tratamento para o uso abusivo de drogas, além do mais, o uso abusivo de substâncias não é uma particularidade apenas da população em situação de rua.
Essas normativas preconizam a internação involuntária ou compulsória de pessoas em sofrimento psíquico de forma breve, como último recurso terapêutico, bem como a produção de ações e políticas que visem ao tratamento de forma territorial, aberta e de base comunitária, priorizando ações intersetoriais, inclusivas, humanizadas, não discriminatórias e que garantam o direito à saúde, à liberdade, à integridade e à dignidade das pessoas em situação de rua, em uso de drogas ou não.
Na contramão deste histórico, em 5 de Agosto de 2019, o prefeito Marcelo Crivella, por meio do decreto nº 46.314, institui a internação involuntária como ação prioritária na atenção e cuidado a pessoas em sofrimento psíquico devido ao uso de álcool e outras drogas e que têm suas trajetórias de vidas nas ruas.No percurso da história da população em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro, a partir das nossas experiências como profissionais do campo do SUS e do SUAS identificamos por diversas vezes que tais ações são mais promotoras de iatrogenias (interrupções dos tratamentos no nível territorial – para HIV, tuberculose, diferentes tipos de sofrimento psíquico, etc. – nos dispositivos de atendimento no qual esta população já mantém seus vínculos.
A resposta escolhida por uma gestão que tem diminuído seus investimentos nas áreas essenciais às camadas mais vulneráveis da população foi não um remanejamento de recursos para dar maior estrutura ao atendimento de seus usuários, mas um retorno a práticas que visam à responsabilização do indivíduo por sua condição e sofrimento, além de reeditar os estigmas que vinculam a população em situação de rua à periculosidade e risco para terceiros.
A política de Assistência Social, assim como a Saúde, vem sofrendo reduções em seus orçamentos, sendo isto visível no estado precário dos equipamentos públicos, nos atrasos de repasses de verbas a entidades, nos atrasos de pagamento aos funcionários terceirizados, além da falta de concursos para os setores, que já apresentam grande déficit de trabalhadores.
Segundo Giovanna Bueno Cinacchi, cientista social e assistente social, gestora de pesquisa do Instituto Rede Abrigo e coordenadora do Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua-RJ, “Desde 2015 tem ocorrido uma intensificação no desmantelamento das políticas públicas tanto pelo desfinanciamento, quanto no próprio âmbito de tomada de decisões acerca de que política pública será implementada.No âmbito da saúde mental, o moralismo religioso tem deixado o espaço privado, ao qual pertence, para ocupar o espaço público, concorrendo ou substituindo políticas construídas de forma horizontal, por toda a sociedade”.
Cinacchi ressaltou ainda que “a nova PNAD e o novo direcionamento tomado são as implicações para populações vulnerabilizadas. No caso das pessoas em situação de rua, a pandemia da Covid-19 foi o subterfúgio utilizado para a publicação da portaria nº 69, do Ministério da Cidadania por exemplo. No Rio isso também não é novidade. Desde 2019, Crivella e Witzel têm se alinhado ao governo federal no que tange à política de isolamento e encarceramento das pessoas em situação de rua. No município, o prefeito Marcello Crivella vem tentado desde junho desse ano realizar o acolhimento compulsório de pessoas em situação de rua, novamente com o subterfúgio de protegê-las da covid-19. A ação foi judicializada e a prefeitura não conseguiu, até o presente momento, provar que essas remoções seriam positivas”.
Vania Rosa, que já esteve em situação de rua e hoje é militante de direitos desta população, fundadora do Projeto JUCA e do Coletivo Rua Solidária, coordenadora do Fórum Permanente sobre Pessoa Adulta em Situação de Rua/ RJ e conselheira suplente do Cmas/ RJ (Conselho Municipal de Assistência Social, explicou que “o desmonte dos equipamentos como Centro Pop, Consultório na Rua, Caps, Cras, Creas, etc já vem sendo um projeto deste atual governo, nas três esferas. Aqui no RJ, principalmente o atual prefeito, decretou internação compulsória para população em situação de rua, como se se essas pessoas fossem todos drogados, estigmatizando ainda mais”.
“Sob o meu ponto de vista, já tendo passado por várias internações, comunidades terapêuticas, ONGs evangélicas, 11 no período de 15 anos vividos em situação de rua, por consequências da minha dependência alcoólica e outras drogas, acredito que isso seja projeto de governo(…). Quanto mais pessoas na rua, mais chances e oportunidades de negócios, e por aí vai… Ganham com a miséria alheia”. “Destroem, para se manterem ricos. Sucateiam equipamentos, desvalorizam profissionais, técnicos, para que se enfraqueçam, com a finalidade de fortalecer comunidades terapêuticas”, finalizou, contundente Vânia.
Justamente utilizando o contexto pandêmico como artifício, o governo federal promoveu mais ações contrárias a Política de Redução de Danos: no dia 15 de julho de 2020, foi publicada a Resolução nª1, que revoga a Resolução 03/GSIPR/CH/CONAD de 27 de outubro de 2005, da Política Nacional sobre Drogas. E recentemente, em 28 de julho de 2020 é publicada a Resolução nª3 que prevê e regulamenta, no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas-Sisnad, a internação de crianças e adolescentes que se encontram em vicissitudes decorrentes da dependência de álcool e outras drogas, em Comunidades Terapêuticas – CTs.
Em 14 de maio deste ano, foi a vez da Portaria nº 69, que recomendou as CTs “para a garantia de proteção social à população em situação de rua, inclusive imigrantes, no contexto da pandemia do novo Coronavírus, Covid-19”. O financiamento público às CTs contribui mais ainda para o quadro de desmonte das instituições e propostas públicas, do SUS e SUAS, enfraquecendo ainda mais o cuidado na área, terceirizando as principais funções do Estado e tornando obscura o destino de enormes montantes de verba pública.
O CRP-RJ foi uma das mais de 150 instituições signatárias do manifesto “10 Motivos contrários à atuação das Comunidades Terapêuticas junto à população em situação de rua (Portaria 69/2020)”, por acreditar que se trata de mais um retrocesso que coaduna com a intensificação de um projeto de mercantilização e manicomialização do cuidado na Saúde e na Assistência Social.
Diante de todo esse quadro que articula o retorno de políticas higienistas e criminalizantes, de recorte racista, que remontam à época da escravidão no Brasil, a Psicologia brasileira e o CRP-RJ não ficaram calados.
O CRP-RJ participa ativamente dos espaços de controle social que visam à construção de políticas públicas e à conquista de novos direitos sociais e reitera o seu compromisso com a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial Brasileira e com as normativas do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social.
São Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo, entre outros:
I O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
II O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O CRP-RJ reafirma seu compromisso social e contrapõe-se a qualquer política que promova o retrocesso em nossos direitos.