Cerca de 80 psicólogas (os) e estudantes de Psicologia lotaram, no dia 15 de janeiro, o auditório da sede do CRP-RJ, no Centro do Rio de Janeiro, para participar do debate “Saúde Mental e Medicalização”. Parte integrante de uma agenda de quatro encontros descentralizados sobre Saúde Mental que o CRP-RJ está promovendo ao longo de janeiro, o evento teve como objetivo fomentar uma discussão sobre a temática, problematizando a prática da (o) psicóloga (o) no campo clínico e nas Políticas Públicas.
O encontro foi aberto pelo conselheiro-presidente do CRP-RJ, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, que ressaltou que “esse é o primeiro evento do CRP-RJ em 2020. O ano mal começou, mas nós já estamos com muita vontade de dialogar com a categoria e com a sociedade. A Saúde Mental é um tema fundamental para a Psicologia brasileira e pensar na Saúde Mental como uma política é algo extremamente importante para nós. E, por essa importância, entendemos que esse é um tema que deve ser discutido de janeiro a janeiro”.
A mesa foi mediada pelo conselheiro do CRP-RJ Alexandre Vasilenskas Gil e contou com a participação de três palestrantes. A primeira fala foi de Helena Rego Monteiro, mestre e doutora em Psicologia, professora da FAMATH, conselheira do CRP-RJ entre 2010 e 2016 e integrante do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade.

Helena Rego Monteiro
Helena Monteiro iniciou a palestra abordando o processo de construção do Fórum e de como a mobilização coletiva para ampliar os debates sobre a medicalização da vida foi ganhando força e visibilidade em nossa sociedade. Conforme revelou, o Fórum vem atuando, desde 2010, “na contramão desse processo de medicalização, denunciando a epidemia de diagnósticos e o excesso de prescrição medicamentosa que têm provocado o aumento de vendas da ritalina e de outros psicofármacos”.
Segundo ela, desde então, o Fórum tem produzido diversas ações nesse sentido, promovendo eventos por todo o país, publicando artigos e livros sobre a temática. “A partir daí, passa-se a discutir a medicalização na infância, na educação, no parto, na menopausa, na velhice. Acho que conseguimos abranger um espectro muito maior. Se no início tinha uma questão muito ligada ao TDH [Transtorno do Déficit de Atenção] e à ritalina, hoje, conseguimos falar de forma mais ampla”.
A psicóloga lembrou, ainda, que a medicalização é um fenômeno mais complexo, que vai além da profusão de prescrição e consumo de medicamentos. De acordo com ela, esse fenômeno tem relação com a forma como “o discurso médico tem atravessado o tecido social e transformado a nossa relação com a vida. Há uma captura do viver fazendo com que a racionalidade médica intervenha na saúde de quem não está doente. Atualmente, não há nada no corpo humano que escape ao espaço médico. Nossos corpos são constituídos a partir das práticas e discursos da Medicina, cujo poder vai além de transformar o problema de ordem social em problema de ordem médica: o poder da Medicina prescreve maneiras de viver, pensar e se comportar”.
“Como podemos promover a Saúde Mental sem reforçar a medicalização?”, problematizou Fernando Freitas, doutor em Psicologia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), professor adjunto da UERJ e pesquisador adjunto da Fundação Oswaldo Cruz, dando continuidade à mesa. Segundo ele, o fenômeno da medicalização “é promovido como um modelo biomédico da Psiquiatria” e se caracteriza, entre outros aspectos, por “transformar condições e comportamentos da vida cotidiana em algo patológico”.
Em seguida, o professor da UERJ falou sobre o que denominou de “crise da Psiquiatria”, nas décadas de 1960 e 1970, e sobre como esse cenário contribuiu para a criação, na década seguinte, do DSM 3 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), considerado a “bíblia da Psiquiatria”. “A partir daí, estabeleceu-se uma forte aliança centre a Psiquiatria e a indústria farmacêutica”, explicou o palestrante.

Alexandre Vasilenskas, Artur Mattos e Fernando Freitas (ao microfone)
Fernando Freitas afirmou também que “o DSM não passa de um grande trabalho de ficção porque existe uma literatura científica abundante mostrando que as bases científicas do DSM não existem”. Conforme explicou, “o DSM é baseado em um consenso entre médicos e psiquiatras e, com isso, temos hoje uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais. Um exemplo disso é a estatística que afirma que, nos últimos dez anos, 5,29% da população infantil supostamente sofrem de TDAH”.
O palestrante finalizou sua fala destacando experiências mundiais, como as em prática na Finlândia, baseadas em evidências científicas de tratamento de usuários de Saúde Mental sem uso de medicamentos e com resultados mais eficientes do que em casos onde há uso de psicofármacos.
Encerrando a mesa de debates, Artur Lobo Costa Mattos, psicólogo, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial e militante do movimento “Nenhum Serviço A Menos”, abordou o fenômeno da medicalização como uma “engrenagem do poder do Estado sobre os indivíduos e as classes sociais no processo de constituição das metrópoles urbanas”. Segundo ele, o processo de medicalização está associado à emergência da metrópole e se dá em níveis diferentes para cada grupo social.
“O processo de medicalização não é só excludente, baseado em uma periferização, como acontecia, por exemplo, na época da construção dos grandes manicômios em localidades mais afastadas. Ele faz parte da própria construção da cidade e das demandas constituídas socialmente nesse processo de expansão da metrópole. A metrópole é necessariamente um lugar insalubre e, por isso, ela demanda e necessita de processos de medicalização, como a construção de redes de abastecimento de água e de saneamento básico. Isso nos dá uma dimensão de que a medicalização não se refere penas à prevalência do poder médico”, analisou.
Ainda de acordo com o palestrante, “existem processos de medicalização por precarização, isto é, há uma escassez de profissionais e de infraestrutura para atender de forma integral à demanda de saúde da população, e, com isso, aumenta-se a prescrição de medicamentos, porque é uma solução mais rápida e fácil. E há também processos de precarização da medicalização”, como, por exemplo, a ausência ou ineficiência das redes de tratamento de água e saneamento básico.