Por Esther Maria de Magalhães Arantes (CRP 05/3192)
Devemos às lutas da população brasileira por reconhecimento, liberdade e direitos – ao final da ditadura civil-militar (1964-1985) a aprovação da Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã. Logo a seguir, foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), regulamentando o artigo 227 da Constituição, que dispõe sobre os direitos deste segmento infanto-juvenil. Neste movimento, o Brasil, também em 1990, ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, assumindo o compromisso de construir uma ordem legal interna voltada para sua efetivação.
A aprovação do Estatuto foi saudada com bastante entusiasmo por todos aqueles que esperavam grandes mudanças nas políticas sociais básicas e de atendimento, afirmando os mais otimistas que o Estatuto representava uma verdadeira revolução nas áreas jurídica, social e política – por considerar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, pelo princípio da absoluta prioridade no seu atendimento e pela observância de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Depositava-se grande esperança nos Conselhos de Direitos e Tutelares, principalmente pelo princípio da participação popular, também estabelecido no Estatuto.
Passados 29 anos da aprovação da Constituição e 27 do Estatuto e da Convenção, constatamos o movimento inverso, de desconstitucionalização dos direitos e de desmontagem da nossa ainda incipiente democracia. Tanto os direitos das mulheres, da população negra, idosa, LGBT, campesina, pessoas com deficiência, indígenas, trabalhadores etc, bem como os direitos das crianças, adolescentes e jovens, veem sendo duramente atacados, ameaçados e desconstruídos por inúmeras proposições legislativas, administrativas e cortes orçamentários.
Tais investidas têm implicado não apenas em modificações na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente – como o projeto de redução da maioridade penal, por exemplo -, como também nas políticas públicas de Educação, Saúde, Assistência, Cultura e Direitos Humanos, buscando-se não mais a promoção da cidadania e sim o favorecimento do mercado, de grupos conservadores e do fundamentalismo religioso. Basta lembrarmos aqui de propostas como Escola Sem Partido e Reforma do Ensino Médio, além de inúmeras outras, dentre as quais destacamos a insistência em instituir, nas escolas públicas, o ensino religioso de natureza confessional – desconhecendo-se a natureza laica do Estado que, diga-se, é o que garante a liberdade religiosa de todos.
Assim, encontramo-nos desafiados a pensar o aparente paradoxo de uma legislação considerada uma das mais avançadas do mundo, ao lado de uma prática social e institucional de imensa perversidade, totalmente em desacordo com os princípios gerais desta mesma legislação. A própria figura da criança tem se revestido de grande ambiguidade (ora vista como vítima necessitando de proteção, ora como algoz necessitando de correção), levando os mais conservadores a afirmarem que a saúde psicológica da criança exige um contínuo patrulhamento da linha divisória entre adultos e crianças no lar, na escola e na cena cultural mais ampla, implicando também em uma ativa exclusão das crianças daquilo que é considerado o mundo dos adultos (para supostamente preservar o “direito à infância” e não os “direitos da infância”, como se tivéssemos fadados a ter que escolher entre um e outro).
Ao pender o barco para as medidas disciplinadoras, punitivas, segregativas e de precarização das políticas públicas, longe de resolver nossas aflições, caminhamos para a consolidação e o aprofundamento da histórica divisão entre “criança/adolescente” e “menor” – divisão esta que foi justamente o motivo que levou os movimentos sociais a lutarem, na Constituinte de 1987/88, para que o Brasil adotasse a Proteção Integral para toda a infância e juventude, e não apenas para uma parte dela.