
Da esquerda para a direita, os palestrantes João W. Neri, Paula Land Curi, Rosilene Gomes e Maria Luiza Rovaris Cidade, em mesa de debates sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos.
Na tarde do dia 27 de julho, a última atividade da 10ª Mostra Regional de Práticas em Psicologia foi a mesa “Temas em Direitos Sexuais e Reprodutivos”, que, mediada pela psicóloga e ativista feminista Maria Luiza Rovaris Cidade, contou com palestras dos psicólogos Rosilene Gomes (CRP 05/10564), Paula Land Curi (CRP 05/20409) e João Walter Nery.
Primeira a palestrar, Gomes abordou a relação entre mulheres e câncer. “A questão que eu trago para debate se refere justamente à saúde, que, em seu conceito ampliado, inclui bem-estar nas diferentes dimensões física, sociais e afetivas. A relação dos agravos da saúde com os direitos sexuais e reprodutivos já foram amplamente discutidos, no caso da Aids, a partir das lutas e demandas do ativismo e de setores da academia. Busco aqui trazer também o câncer para o debate no campo dos direitos, especialmente os cânceres que afetam o corpo feminino”, disse a psicóloga, que atua como docente e coordenadora suplente da área de Psicologia na Residência Multiprofissional em Oncologia do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA).
Antes de imergir no tema, ela teceu um breve histórico sobre o conceito de direitos sexuais e reprodutivos, afirmando tratar-se de uma questão que, “certamente, não diz respeito apenas às mulheres”. Neste percurso, abordou o fato de as mulheres virem, desde a década de 1970, reivindicando “o controle do próprio corpo, da fecundidade e atenção especial à saúde”, num processo marcado por lutas políticas em defesa da legalização do aborto, do acesso a métodos contraceptivos, entre outros direitos.
Segundo a especialista, que também é doutoranda e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, além de responsável técnica pela seção de Psicologia no Hospital de Câncer II (HC II), entre os cânceres que mais afetam as mulheres no país, está o de mama, que provocou 14.388 mortes em 2013 – sendo 181 de homens e 14.206 de mulheres. Neste ano, já há uma estimativa de 57.960 casos desse tipo de câncer. O câncer do colo do útero, que deve afetar 16.340 mulheres neste ano, provocou 5.430 óbitos em 2013, de acordo com Gomes.
“Apesar de ser considerado um câncer de relativamente bom prognóstico, se diagnosticado e tratado oportunamente, as taxas de mortalidade por câncer de mama são elevadas no Brasil. Em relação ao colo do de color de útero, embora corresponda ao terceiro tipo de neoplasia que mais afeta mulher, a doença ganha destaque pelo fato de ser prevenível”, afirmou a psicóloga, segundo a qual o segundo tipo de neoplasia que mais afeta mulheres brasileiras é a do cólon e reto.
“Em ambos os casos [mama e colo do útero], a doença atinge áreas do corpo feminino que estão impregnadas de sentidos permeados por símbolos ligados à sexualidade e construídos a partir de discursos e práticas que promoveram uma medicalização do corpo da mulher, a partir dos séculos XVIII e XIX, com a produção de normas e padrões, mas também de resistências e rupturas”, disse ela.
“O câncer representa um grave problema de saúde pública em todo o mundo. Estudos epidemiológicos revelam um progressivo aumento no número de casos e de mortalidade, especialmente nos países do sul, que, segundo Boaventura de Sousa Santos, ‘não designam apenas um lugar geográfico, mas também uma metáfora de todas as situações de opressão, de violência, de privação e de sofrimento que são indissociáveis da globalização neoliberal’”, destacou Gomes, segundo a qual é no sul que o câncer mais mata e faz sofrer pessoas com câncer.
Após discorrer sobre o HPV e o câncer do colo do útero, sobre os cuidados produzidos para a assistência às mulheres com câncer, a desigualdade de direitos entre os gêneros e outras pautas, Gomes falou sobre a portaria 3535 de 1998, do Ministério da Saúde, que “tornou obrigatória a presença de psicólogos clínicos nas equipes multiprofissionais como um dos critérios para cadastramento dos centros de alta complexidade em oncologia junto ao Sistema Único de Saúde (SUS)”, o que significa que “o psicólogo compõe equipe multidisciplinar cuidadora do paciente com câncer, atuando em todas as etapas do processo do tratamento oncológico: prevenção, detecção precoce, tratamento, reabilitação, cuidados paliativos”, segundo a especialista.
Ela encerrou sua palestra abordando a responsabilidade dos profissionais de psicologia diante dessa questão. “Cabe a nós, psicólogos, decidir de que forma vamos ocupar esse espaço, que clínicas vamos produzir, o que vamos incluir nas nossas reflexões e práticas, qual o lugar das análises de políticas públicas de saúde e das reflexões sobre os efeitos das nossas práticas. As reflexões sobre as relações de poder, desigualdade de gênero, discriminação da população LGBT, os recortes de raça, classe social, desigualdades de oferta nos serviços de saúde, os obstáculos ao acesso ao sistema público de saúde, além e tantas outras questões relevantes estão presentes em nossas práticas e teorizações? Nosso cuidado inclui uma perspectiva crítica e reflexiva?”, questionou Gomes.
“O lugar do psicólogo no cuidado ao câncer deve ir além da assistência clínica, que certamente é fundamental, mas precisa incluir reflexões e intervenções junto às equipes de assistência e às políticas de saúde. Precisamos reafirmar a inclusão dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas acometidas pelo câncer e a dimensão da fruição sexual”, finalizou.
Maternidade e Violência Obstétrica
Em sua palestra, a psicóloga Paula Land Curi, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), falou sobre maternidade e violência obstétrica. “Não consigo pensar a violência obstétrica sem pensar a violência institucional e de gênero”, introduziu ela, que atua também no Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap), de alto risco materno e fetal, localizada em Niterói.
A partir do momento em que foram experimentados instrumentos para realizar partos, os médicos ingressam num universo que, anteriormente, era somente feminino, segundo Curi. “O parto tinha uma história de mulheres, de gerações e gerações, deixa de ser feito por mulheres, as parteiras, para ser feito por homens, como ciência”, explicou a psicóloga, contextualizando o que chamou de “caça às parteiras”.
“As parteiras tinham mais competência e habilidade por conta da prática cotidiana, mas elas se tornam ameaças ao saber que vem sendo legitimado. Aí o médico vai propor, em determinado momento, a hospitalização do parto, com a criação das maternidades. E aí surgem duas coisas que são aliada ao saber médico: a questão da assepsia, muitas mulheres morriam, e da anestesia”, afirmou.
Segundo a psicóloga, “o governo e a Igreja pouco queriam saber sobre se as mulheres estavam sendo bem atendidas” e o que lhes interessava era impedir que mulheres fizessem abortos. Ela destacou que as mortes de mulheres não ocorrem somente pelo fato de os abortos serem feitos clandestinamente – e, portanto, sem as devidas condições que garantam a segurança da mulher –, mas em decorrência da violência obstétrica. “As mulheres não são protagonistas da sua condição, não podem escolher nada”, disse Curi.
A psicóloga finalizou sua apresentação abordando a responsabilidade da categoria diante da temática, enfatizando que o trabalho do psicólogo não pode se limitar a ouvir as mulheres que são vítimas de violência obstétrica, nem pode “esgotar-se em denúncias”. “Minha prática me mostra que ainda temos muito a caminhar nesse sentido e que muitas vezes as mulheres são expostas a esse tipo de violência mas não percebem a sua prática, outras optam por se calarem”, afirmou. “Profissionais psis precisam trabalhar isso que está velado e que se coloca como prática naturalizada, e assim podemos trabalhar resistindo, esse é o nosso lugar, encerrou Curi.
“O discurso científico é feito por homens, cisgêneros, heterossexuais e machistas”, diz psicólogo trans
Considero o primeiro homem trans operado no Brasil, o psicólogo João Walter Nery iniciou sua apresentação colocando a necessidade de os cursos de formação em psicologia incluírem em sua grade curricular a disciplina “Gênero e Psicologia” – que, segundo ele, só é obrigatória em quatro universidades brasileiras. “Nós formamos psicólogos, assistentes sociais, médicos, enfermeiros, que não sabem a diferença entre gênero e sexualidade”, criticou Neri, que é ainda escritor e consultor em gênero e sexualidade, além de ativista de Direitos Humanos.
“O discurso científico é feito por homens, cisgêneros, heterossexuais e machistas”, disparou ele, que, de forma didática, discerniu gênero de sexualidade e os conceitos de cis e trans. “’Cis’ quer dizer ‘do mesmo lado’. Então eu sou um transgênero, porque eu transcendi o meu gênero em relação ao meu corpo. Quem não transcendeu, isto é, quem tem o gênero de acordo com o corpo com que nasceu, é um cisgênero, como a maioria das pessoas aqui”, disse.
O ativista contou a um público interessado que se identifica com o gênero masculino desde os quatro anos de idade e que foi criado como uma menina, embora nunca tenha se sentido uma menina, “nem lésbica”. Conheceu o termo trans somente aos 26 anos de idade e, antes dos 30, nunca conheceu um transexual com quem “pudesse trocar informações em nível de vivência”. Na década de 70, marcada por movimentos de contracultura, ele se sentiu salvo pela moda unissex. “Aí eu pude pela primeira vez usar calça jeans e cortar o meu cabelo, me tornar uma figura realmente ambígua”, disse.
Tendo saído de casa aos 22 anos para morar com sua namorada, viveu a experiência de ser visto como um rapaz e “tratado no masculino por todas as pessoas que não o conheciam”, ao mesmo tempo em que continuava sendo tratado no feminino pela família, pelos amigos e colegas de trabalho. “Eu vivia duas identidades sociais ao mesmo tempo. Enlouquecedor! Eu entrava num bar e nunca sabia se iam me chamar de senhora ou de senhor. Se me chamavam de senhora, eu tinha que baixar o pescoço e falar mais grosso. Eu não me hormonizava, eu nem sabia que existia isso. Era uma loucura”, recordou.
“Os próprios documentos legais são o que mais depõe contra um transexual. Quando falo ‘trans’, estou me referindo a travestis, a croosdress, a todas as pessoas que transcendem o gênero em relação ao seu próprio corpo, porque, na verdade, não é o gênero que faz o corpo, é o corpo que vai determinar o gênero”, enfatizou Neri. “Aquela maldita frase freudiana de 1912 de que ‘a anatomia é destino’, vocês enterrem. Eu tenho o maior respeito por Freud, acho que ele foi um gênio em várias questões, mas nessa ele foi muito infeliz. E é isso que a Medicina e a Jurisprudência fazem até hoje, e a sociedade define a gente em função de um órgão genital que ninguém vê”, criticou.
O psicólogo também abordou o machismo e a necessidade de as pessoas vencerem a cultura sexista em que estamos todos inseridos, e, com sensibilidade, definiu a responsabilidade do profissional de psicologia diante da questão que abordou magistralmente ao longo de sua palestra. “Psicólogo tem que ter um ouvido deste tamanho e um coração deste tamanho para compreender o que é a complexidade do ser humano. Cada um de nós é diferente”, encerrou Neri.