A tortura pode ser considerada uma tecnologia de poder que produz danos físicos (os mais visibilizados), psicológicos e morais sobre os corpos e mentes de pessoas. Tais danos não são somente individuais, mas também coletivos, atingindo famílias, comunidades, um segmento específico e/ou uma determinada população.
Seus efeitos danosos podem ser imediatos, tardios e/ou transgeracionais. Alguns efeitos da tortura são mais visíveis e outros invisibilizados. Assim, a tortura é também um dispositivo que produz e reproduz subjetividades; produz efeitos de subjetivação que atingem toda a sociedade de forma não visível.
A pessoa diretamente torturada, além dos suplícios físico-psicológico-morais, é despojada de tudo que costuma ser caracterizado como o humano em nós (torna-se subjetividade desumanizada); o torturador – além de infligir os tormentos, coisifica e sataniza o “inimigo”, o “monstro”, tornando trivial o mal em nome de um bem supostamente maior (torna-se subjetividade desumanizadora); parte da sociedade coloca-se pronta a justificar a tortura daqueles transformados em “não humanos”, “matáveis”, que supostamente a ameaçam (subjetividade despolitizada, voltada para si mesma). Assim, pode-se dizer que o dano é causado por uma parte da humanidade (que passa a se considerar realmente humana) à outra parte da humanidade (que passa a ser considerada não humana).
A interdição à tortura consta da Constituição Federal de 1988. O inciso III do artigo 5° da Constituição institui que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; e o inciso XLIII considera a tortura um crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia. Contudo, a tipificação do crime de tortura no Brasil ocorreu somente em 1997, pela lei n.° 9455**. O ordenamento jurídico do nosso país estende, na letra fria da lei, a garantia dos Direitos Humanos a todas e todos, a inviolabilidade da vida e da dignidade humana das (os) brasileiras (os). Contudo, historicamente, sabemos que isso nunca se estendeu aos grupos politicamente minorizados e àqueles considerados inimigos do Estado e/ou das classes dominantes.
Atualmente, a maioria dos crimes de tortura continua sendo de caráter institucional (praticada em dependências policiais, civis ou militares, unidades prisionais e assemelhadas e outras instituições fechadas). Se antes a ditadura procurava ocultar sua ocorrência e praticá-la nos “porões”, hoje observamos que essa preocupação é tênue. Algumas dessas práticas passam até a ser espetacularizadas pela mídia, o que contribui para a produção subjetiva de “justificativas” para algumas dessas ocorrências por parte de certos segmentos da sociedade.
Nos dias atuais, infelizmente, assiste-se à tentativa de acelerado desmonte de garantias sociais conquistadas e, paralelamente, testemunhamos por décadas a não desconstrução pelo Estado do chamado “entulho autoritário da ditadura civil-empresarial-militar” nas instituições, inclusive por governos anteriores considerados mais progressistas – contribuindo assim para a continuidade da cultura da tortura e da impunidade para os torturadores de ontem e de hoje.
Por ocasião desta data, convém lembrar que a ainda tênue e recém-conquistada democracia brasileira está em risco quando assistimos a um monumental e sinistro avanço de medidas de extrema repressão às lutas sociais no Brasil, com o uso de legislações que remetem ao período de exceção – como a lei de segurança nacional (antes aplicada para punir quem lutava contra a ditadura civil-militar, foi aplicada durante a Copa de 2014) e com a lei 499 de 2013, que tipifica o crime de terrorismo (exigência para a realização das Olimpíadas cariocas), que foi aprovada pelo parlamento e, mesmo com vetos, sancionada pela presidência da república, ainda este ano.
Assim, lembramos que nós, psicólogas (os), onde quer que atuemos, lidamos com a subjetividade e sofrimento humanos e podemos contribuir para o combate a esse crime de lesa humanidade, apoiados em nosso Código de Ética Profissional, por meio de práticas singulares que incluam reflexões críticas e que auxiliem a desconstrução de preconceitos, de discriminações e das reverberações das subjetividades produzidas de forma hegemônica.
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* Em 26 de junho de 1987, foi estabelecida a Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, acatada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984, pela Resolução 39/46, e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. Após dez anos de trabalho, a Convenção Contra Tortura da ONU definiu o dia 26 de junho como Dia Internacional das Nações Unidas de Apoio às Vítimas de Tortura.
** Segundo o artigo 1º desta lei, a tortura consiste em: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.