A interdição à tortura consta da Constituição Federal de 1988 e, como tal, deve ser observada por todas as autoridades de direito público ou privado, assim como todos nós cidadãos. O inciso III do artigo 5.° da Constituição Brasileira institui que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e o inciso XLIII considera a tortura um crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia. Contudo, a tipificação do crime de tortura no Brasil ocorreu somente em 1997, pela lei n.° 9455**.
Apesar de o ordenamento jurídico atual de nosso país estender a garantia dos Direitos Humanos a todos, a inviolabilidade da vida e da dignidade humana dos brasileiros, historicamente, nunca se estendeu aos grupos politicamente minoritários e a aqueles considerados inimigos do Estado e/ou das classes dominantes.
Dentre outros fatores, o não desmonte pelo Estado do chamado “entulho autoritário” nas instituições e a continuidade da impunidade para os torturadores do regime militar contribuíram para que tortura não tivesse sua prática institucional erradicada ou mesmo diminuída com o término da ditadura militar (1964-1985). Atualmente, a maioria dos crimes de tortura continua sendo de caráter institucional (praticada em dependências policiais, civis ou militares, unidades prisionais, entre outras). Se antes, a ditadura procurava ocultar sua ocorrência e praticá-la nos “porões”, hoje observamos que essa preocupação é tênue, inexiste. Algumas dessas práticas passam a ser espetacularizadas pela mídia, o que contribui para a produção de subjetividades hegemônicas e de “justificativas” para algumas dessas ocorrências por parte de certos segmentos.
A tortura pode ser considerada uma tecnologia de poder que produz danos físicos (os mais visíveis), psicológicos e morais sobre os corpos e mentes de pessoas. Tais danos não são somente individuais, são também coletivos – atingindo uma família, uma comunidade, um segmento específico ou uma determinada população. Seus efeitos danosos podem ser imediatos, tardios e/ou transgeracionais. Alguns efeitos da tortura são visíveis e outros invisíveis ou invisibilizados. Assim, a tortura é também um dispositivo que produz e reproduz subjetividades; produz efeitos de subjetivação que atingem toda a sociedade de forma não visível. O torturado, além dos suplícios físicos sofridos, é despojado de tudo que costuma ser caracterizado como o humano em nós (subjetividade desumanizada); o torturador, além de infligir os suplícios físicos, coisifica, sataniza o “inimigo”, o “monstro”, trivializando o mal em nome do bem (subjetividade desumanizadora); a sociedade coloca-se pronta a justificar a tortura dos tornados “não humanos”, “matáveis”, que supostamente a ameaçam (subjetividade despolitizada, enquistada em si). Pode-se dizer que o dano é causado por uma parte da humanidade (que passa a se considerar realmente humana) à outra parte da humanidade (que passa a ser considerada não humana).
O psicólogo, que onde quer que atue lida com a subjetividade humana, pode e deve contribuir para a erradicação desse crime de lesa humanidade, apoiado em seu Código de Ética Profissional, por meio de práticas que incluam reflexões críticas e singulares e que auxiliem a desconstrução de preconceitos, de discriminações e das reverberações das subjetividades produzidas de forma hegemônica.
Comissão Regional de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro
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* Em 26 de junho de 1987, foi estabelecida a Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, acatada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984, pela Resolução 39/46, e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. Após dez anos de trabalho, a Convenção Contra Tortura da ONU definiu o dia 26/06 como Dia Internacional das Nações Unidas de Apoio às Vítimas de Tortura.
** Segundo o artigo 1º desta lei, a tortura consiste em:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.