O CRP-RJ apoia a carta de repúdio da psicóloga Janne Calhau Mourão (CRP 05/1608), do Projeto Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, com relação a uma nota do jornal Folha de São Paulo publicada em 19 de fevereiro. Leia abaixo o texto completo.
Nota Revoltante
Em uma nota da redação do jornal Folha de São Paulo (19/02/09) – em resposta a uma das cartas de repúdio ao editorial “Limites a Chávez” (17/02/09) que atribuiu a alcunha de “ditabranda” ao regime militar imposto à força no Brasil (1964 a 1985) – um jornalista, demonstrando total desconhecimento histórico, relatou de forma linear os 21 anos da ditadura militar brasileira reafirmando que, comparada às demais ditaduras latinoamericanas do mesmo período, a brasileira teria sido a mais branda e teria apresentado níveis baixos de violência política e institucional.
Primeiramente, o jornalista incorreu no erro de querer classificar o dano causado pela violação dos direitos humanos pelo Estado. Tal dano é sempre inclassificável, assim como não se pode dizer que a dor de alguém é maior ou menor do que a de um outro, já que a dor é uma realidade de intensidade, não de extensividade, e não podemos medi-la a metro. Se as ditaduras da Argentina e do Chile cometeram um número maior de assassinatos, tal distinção numérica, no entanto, não nos pode levar à leviandade de querer classificar uma ditadura como menos ou mais violadora que outra. Nos crimes de lesa-humanidade somos todos atingidos em um só ato. Por outro lado, ficamos sem saber o que o redator da nota consideraria violência política e institucional, já que não pareceu associar os fatos acontecidos ao conceito.
Contudo, indubitavelmente, o jornalista, em sua resposta apressada e inconsequente, ofereceu-nos um panorama claro dos efeitos até hoje nefastos do silenciamento que ainda paira sobre os fatos acontecidos no período da ditadura militar brasileira.
Na ditadura militar, todas as garantias constitucionais foram suspensas e, além das pessoas que foram presas, torturadas, mortas ou desaparecidas, todos os partidos e muitos políticos foram cassados; os meios de comunicação foram censurados; jornais foram empastelados e fechados; o direito de ir e vir foi cerceado; associações e reuniões foram proibidas; correspondências foram violadas; escutas telefônicas foram implantadas; peças de teatro, livros e filmes foram proibidos (Sófocles teve a sua prisão decretada); currículos foram reformulados retirando-se disciplinas consideradas “perigosas”; professores foram presos (inclusive o ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso); inúmeros artistas, cientistas e intelectuais tiveram que fugir do país e muitos foram presos.
Podia-se ser preso e “sumido” ao bel prazer dos militares, em singelos namoros noturnos em locais considerados “suspeitos”, em passeios bucólicos pela ainda silvestre Barra da Tijuca, como também por possuir livros “proibidos”, por dar aulas consideradas “subversivas”, por ouvir músicas “renegadas” pelo regime, ou simplesmente por expressar opiniões dissonantes do regime vigente à época.
Parte de nossa história foi subtraída da história oficial, os arquivos da ditadura nunca foram abertos, os torturadores não foram apontados, responsabilizados e muito menos punidos (alguns foram até laureados), ao contrário do que está sendo feito em outros países da AL.
Sem se aperceber, o jornalista revelou-se ele próprio como um dos afetados pela tal “ditabranda”: um profissional formado na ignorância da história de seu próprio país e, portanto, desconhecedor do que seja efetivamente violência política e institucional.
Para os chamados “cidadãos comuns” – todos também afetados, mesmo desconhecendo tais efeitos –, isso poderia ser apenas chamado de alienação política, fato historicamente comum na sociedade brasileira. Para um jornalista, é uma falha grave em sua formação profissional, a menos que se considere um pós-moderno e tenha decretado o fim da história.
Em caso contrário, deveria o jornalista aprender que o acobertamento dos crimes de lesa-humanidade da ditadura, o silenciamento sobre tal período histórico, e a impunidade dos crimes e dos criminosos produziram e continuam produzindo efeitos que estão entranhados nas instituições do país e arraigados nos “corações e mentes” dos brasileiros.
Por exemplo, na própria Folha de São Paulo on line de 26 de fevereiro, lemos que a impunidade envolvendo casos de abuso de poder cometidos por policiais federais, estaduais e militares foi ressaltada pelo Departamento de Estado americano em seu relatório anual. O documento apontou que esse é um dos maiores problemas enfrentados em direitos humanos no Brasil. A violência policial foi um dos destaques no estudo do Governo americano, que denunciou “mortes ilegais, força excessiva, agressões, abusos e torturas de detidos e reclusos por parte de policiais e forças de segurança de prisões”. Destacou ainda que muitos assassinatos foram cometidos por esquadrões da morte ligados às forças de segurança, “em alguns casos com a participação policial”.
Essa é também uma das heranças do silenciamento sobre os crimes da ditadura militar brasileira e se estende até os dias atuais: o esquema dos porões ainda não foi desmontado; ontem, os “inimigos perigosos” confinados nos porões foram os chamados de “subversivos” pela ditadura em sua política repressora de “segurança nacional”; hoje, na reinante política repressora de “segurança pública”, dentro do modelo neoliberal, quem seriam os “perigosos inimigos” (e de quem) sujeitados aos porões ainda não desativados?
Se fosse capaz, e não tivesse medo de perder o emprego, caberia ao jornalista pesquisar a resposta.
Janne Calhau Mourão (CRP-05/1608), psicóloga do Projeto Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.
16 de março de 2009