O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro apóia e divulga abaixo carta aberta dos profissionais de Saúde Mental Infanto-Juvenil do Município do Rio de Janeiro.
CONVOCAÇÃO AO DEBATE ACADÊMICO E CIENTÍFICO
À comunidade científica e acadêmica de pesquisadores, docentes, psicanalistas, Universidades, Programas de Pós-graduação e Pesquisa em Psicanálise, Saúde Mental, Saúde Coletiva e Saúde Pública, Escolas e Sociedades de Psicanálise, demais profissionais e pesquisadores da área da saúde mental, gestores públicos da área da Saúde Mental e do SUS, usuários, familiares e sociedade civil
APRESENTAÇÃO DA QUESTÃO
No último dia 4 de janeiro, primeiro domingo de 2009, foi publicada no JORNAL DO BRASIL, encarte CIDADE, matéria intitulada ‘AUTISTAS SERÃO TRATADOS NO RIO: Novo Secretário da Pessoa com Deficiência promete implementar o serviço na rede municipal”, do jornalista Paulo Márcio Vaz, comentando uma entrevista com o Sr. Márcio Pacheco, publicada na mesma edição do Jornal, na página do verso, empossado na véspera como titular da Secretaria Especial para a Pessoa Portadora de Deficiência, ex-FUNLAR – Fundação Lar Francisco de Paula, órgão que integrava a Secretaria Municipal de Assistência Social e que passou a ter status de secretaria especial em meados de 2008, afirma que não existe tratamento para o autismo na rede municipal e pública do Rio de Janeiro, referindo-se a “pais de crianças afetadas pela síndrome, que praticamente não têm a quem recorrer depois de obtido, a duras penas, o diagnóstico”. Promete também que agora esse tratamento começará a ser prestado pela rede pública.
Pensamos que tais declarações revelam um contexto político-institucional e clínico, no campo da assistência pública à saúde mental infanto-juvenil, que convoca a comunidade científica a tomar parte ativamente, uma vez que a questão do tratamento do autismo comporta uma dimensão eminentemente científica, constituindo-se como um campo ainda muito pouco conhecido, de alta relevância social, de agudo interesse da saúde pública, coletiva e da saúde mental, sobre o qual a atividade da pesquisa precisa se debruçar de modo cada vez mais intenso e contínuo. Nosso propósito é, assim, abrir um amplo debate, iniciando-o com os colegas de mesmo campo, o campo da pesquisa científica e acadêmica de orientação metodológica eminentemente clínica, que envolve ás áreas de Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Saúde Coletiva, Saúde Mental (em amplo sentido) e áreas afins.
Por outro lado, tanto a matéria jornalística em questão quanto a Lei Municipal nº 4709, que nela é invocada e da qual trataremos adiante, tomam um partidarismo científico que consideramos inaceitável, tendo em vista a pluralidade de tendências existentes no campo científico-assistencial que, na atualidade, dedicam-se à pesquisa e à clínica de portadores de autismo, sobretudo em unidades públicas de saúde mental a isso destinadas: referimo-nos às unidades intensivas, diárias, diurnas e de base territorial intituladas Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSis), cuja clientela prioritária constitui-se precisamente de crianças e adolescentes autistas e psicóticos.
Por este motivo, embora o presente documento tenha como objetivo precípuo convocar ao debate a comunidade científica e acadêmica (Programas de pós-graduação lato sencu (Especialização) e stricto sensu (Mestrado e Doutorado) nas áreas de Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Saúde Mental, Saúde Coletiva e Saúde Pública, Escolas de Psicanálise e Sociedades Psicanalíticas, associações de profissionais da área, como ABRASCO (Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva), CEBES (Centro Brasileiro de Estudos sobre a Saúde), ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), ABENEPI (Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins), Conselho Federal de Psicologia, além de outras entidades, dirigimo-nos também às diferentes categorias profissionais de saúde mental da rede municipal do Rio, especial, porém não exclusivamente, os que trabalham com o segmento infanto-juvenil, demais profissionais e pesquisadores da área da saúde mental, gestores, usuários, familiares e sociedade civil no sentido de abrir um amplo debate sobre a questão, além de esclarecer aos gestores, jornalistas e à população em geral que, contrariamente ao que foi veiculado na referida matéria, existe, há pelo menos dez anos, uma rede de serviços tais como acima caracterizados e nomeados (os CAPSis) que se dedicam seria, conseqüente, árdua e continuamente ao tratamento de autistas na rede pública de saúde mental do município do Rio de Janeiro.
Entendemos que a matéria publicada no Jornal do Brasil pode contribuir para o debate sobre essa relevante questão, e que o novo Secretário, que protagonizou a referida matéria, por não ter um conhecimento mais profundo do campo clínico-científico que cerca a questão do autismo, faz afirmações infundadas, premido talvez pelo anseio de, como gestor público, trazer às famílias e aos próprios pacientes autistas um tratamento eficaz prestado em rede pública de saúde, considerando que a matéria faz alusão a métodos de tratamento desenvolvidos em outros países, sobretudo nos Estados Unidos, que efetivamente não são praticados na saúde pública brasileira.
Por outro lado, consideramos que o Sr. Márcio Pacheco toca em pontos cruciais da questão, como a precariedade do transporte público gratuito, no sentido de garantir a acessibilidade da população ao tratamento, parcerias entre o Poder Público e entidades científicas e de pesquisa, como Universidades, enfim, para além da afirmação de que não existe tratamento adequado na rede pública, que é infundada, a entrevista traz na verdade uma grande contribuição para a melhoria de condições globais em termos da infra-estrutura e do suporte social ao tratamento, que efetivamente existe.
Por isso, ao invés de limitarmo-nos a um esclarecimento público sobre as afirmações infundadas feitas na matéria sobre a inexistência de tratamento adequado aos autistas na rede pública municipal do Rio de Janeiro, decidimos tomar a matéria publicada como ocasião de debate e reflexão sobre o que está em jogo no tratamento dos autistas, fazendo disso o eixo de nossa discussão, e dos próprios autistas e suas famílias os principais destinatários e beneficiários deste debate.
SOBRE A LEI MUNICIPAL Nº 4709
A entrevista também faz alusão à Lei 4.709 de 23 de novembro de 2007, de autoria do Sr. Márcio Pacheco, então Vereador do Município do Rio de Janeiro. Esta lei é conhecida como Lei do Tratamento do Autismo, e visa garantir que o poder público assegure acesso da população atingida por esta síndrome ao tratamento, o que é absolutamente louvável em uma Lei de inspiração social. Entretanto, já em seu caput, e reiterado pela íntegra do texto do Art. 1º, esta Lei “reconhece a pessoa com autismo como portadora de deficiência”, condição que é objeto de grandes controvérsias nos meios científicos e está longe de ter, nele, a menor unanimidade. A tendência a inserir o autismo no grande campo das deficiências nada tem de novo. Na verdade, é uma tendência muito antiga, e hoje apenas ganha novas roupagens, com as teorias que supõem deficits orgânicos e neurológicos, que abordaremos adiante. Como veremos, há vertentes de investigação que não consideram o autismo como deficiência, mas como uma posição subjetiva patológica, a ser tratada como tal. Tratar o autismo como uma deficiência é, assim, uma questão controversa, distante da unanimidade entre os pesquisadores deste ainda tão pouco explorado campo de pesquisa clínica, que examinamos a seguir.
Além disso, no afã de propiciar tratamento público aos autistas, esta Lei produz um efeito de segregação na concepção do tratamento, ao preconizar, no Inciso I do Art. 2º, a criação de centros de atendimento integrado de saúde e educação, especializados no tratamento de pessoas portadoras de autismo. No Inciso III do mesmo artigo, ao estabelecer a obrigatoriedade de disponibilizar todo o tratamento especializado nas áreas relacionadas nas alíneas que se seguem, a Lei incorre em grave e injustificável partidarismo na alínea “c”onde se lê: c) psicoterapia comportamental (psicologia); Este partidarismo é reafirmado na alínea “g”: g) métodos aplicados ao comportamento (ABA, TEACCH e outros).
Ora, todo profissional da área da Psicologia sabe que a psicoterapia comportamental é uma das modalidades de psicoterapia existentes, e de forma alguma a única nem garantidamente a mais indicada no tratamento do autismo. Existem muitas críticas feitas ao reducionismo comportamentalista desses métodos, que se limitam a adestrar as crianças através de técnicas impositivas e que não consideram a subjetividade nem o campo da significação de seus atos, treinando-as nas chamadas “AVDs” (atividades da vida diária) que, por mais importantes que sejam, não chegam a definir uma práxis humana, como observa Marx.
Trata-se de um campo plural, cuja diversidade é respeitada no meio científico e universitário, e deve, com maior razão ainda, ser respeitada no texto de uma Lei. Nenhuma Lei que, como tal, é pública e aplicável a todos, pode tomar “partido científico” em favor de uma determinada orientação em detrimento de outras, igualmente presentes no campo das práticas clínicas reconhecidas pela Ciência e em pleno exercício de pesquisa e aplicação de tratamento. Há pesquisas sobre o tratamento do autismo em orientação psicanalítica e em unidade pública de saúde mental (CAPSi) sendo financiadas por Agências Oficiais de Fomento à Pesquisa, como a FAPERJ, através do PROGRAMA PROCIÊNCIA, em convênio com a UERJ, já pelo quarto triênio consecutivo (com avaliação rigorosa a cada renovação trienal) e pelo CNPq, em convênio com o Ministério da Saúde. Há também dissertações e teses sendo premiadas (Cf. Prêmio Carlos Gentille de Mello, promovido pelo Museu da República, destinado a premiar teses e dissertações da área da Saúde defendidas na UERJ, que premiou uma dissertação que contém uma pesquisa nesta orientação com a publicação da dissertação em livro, pela Editora do Museu da República. A alínea “c” da Lei 4709, portanto, ao estabelecer a obrigatoriedade da psicoterapia comportamental, incorre em favorecimento e tendenciosidade, aspectos incompatíveis com uma Lei.
DISCUSSÃO CIENTÍFICA – PANORAMA ATUAL
Tracemos, portanto, com uma caracterização do autismo, suficientemente fenomênica e consensual para não se constituir, já, como objeto de controvérsia. O autismo é um quadro clínico que, quase invariavelmente, acomete crianças a partir de um momento muito inicial de sua existência, e sempre envolve intenso sofrimento psíquico para a criança e para sua família.
Caracteriza-se por uma extrema dificuldade de estabelecimento de laços com as outras pessoas, mas também com objetos de modo lúdico, construtivo ou prazeroso. Exibe também uma forma muito peculiar e problemática de relacionamento da criança com seu próprio corpo e suas funções, tanto as funções ligadas às necessidades ditas básicas e que, normalmente, passam por todo um processo civilizatório de educação e higiene, como também, muitas vezes, as funções de movimento, deslocamento no espaço físico, desempenho de ações concretas capazes de expressar o desejo da criança e de consequentemente obter êxito em seus propósitos. Via de regra, a criança autista não faz uso da fala, embora dê inequívocos sinais de que entende a linguagem e que, portanto, encontra-se dentro dela como sujeito humano em tese capaz de falar. É muito freqüente também que as crianças e adolescentes autistas agridam-se a si mesmas, batendo-se com as mãos ou lançando seu corpo, sua cabeça, contra a parede, por exemplo, ou que batam também nos outros. Esses atos não devem ser interpretados como agressões, significação que têm para nós, mas como algo a ser decifrado em cada caso.
Embora o início do quadro autístico ocorra na infância, razão pela qual o psiquiatra que o isolou como uma síndrome em 1943, o austríaco Leo Kanner, o tenha denominado de autismo infantil precoce, não se pode dizer, de forma alguma, que o autismo é uma afecção da infância, pois ele atravessa a vida do indivíduo, até o presente momento quase sempre sem cura.
Na verdade, a ciência pouco conhece sobre o autismo. No campo científico, encontram-se diferentes abordagens da questão, mas nenhuma delas conseguiu ainda dar uma explicação que se possa considerar inteiramente satisfatória sobre o autismo, sua etiologia, semiologia e consequentemente nenhuma delas foi até hoje capaz de apresentar um método de tratamento eficaz sobre o autismo, capaz de apresentar resultados inequívocos de melhora irreversível e de cura.
Há pesquisas que vem sendo realizadas no campo das Neurociências, por exemplo, que investigam a hipótese de que a qual o autismo estaria relacionado com um fator orgânico que produz uma dificuldade fisiológica específica de absorver e eliminar metais pesados, como o mercúrio, causando sérios efeitos no funcionamento cerebral, inclusive na área da fala. Outras teorias e pesquisas correlatas, muito próximas deste tipo de hipótese, investigam os efeitos do glúten e da caseína como geradores de problemas na digestão das proteínas com efeitos tóxicos sobre o metabolismo cerebral.
Os pesquisadores que seguem esta vertente deparam-se com algumas dificuldades: há crianças que, desde o nascimento, como bebês, já apresentam sinais de irritabilidade, intensa angústia, desinteresse em pessoas e objetos enquanto que outras seguem um curso normal de desenvolvimento até o primeiro ou o segundo ano de vida (em geral, um momento entre 1 e 2 anos de idade), quando então aparecem os sinais do autismo. Como explicar que um fator fisiológico como a não-absorção de determinados metais pesados entre em ação ora imediatamente ao nascimento, ora em momento posterior? Os pesquisadores tentam resolver este impasse afirmando haver o autismo do tipo “1”, que seria inato, e o do tipo “2”, adquirido por intoxicação, e, neste segundo caso (infinitamente mais freqüente em termos estatísticos e epidemiológicos), buscam atribuir a causa da intoxicação ao uso de vacinas que utilizam alguns desses metais em sua composição. Mas aí as pesquisas precisariam ser metodologicamente consistentes para comprovarem esses dois tipos etiológicos de autismo e demonstrarem o efeito dos metais usados nas vacinas como capazes de produzir intoxicações com efeito idêntico ao do fator congênito da não-absorção do mercúrio. Essas teorias, portanto, ainda não conseguiram atingir o nível de comprovação científica consistente (uma explicação coerente em termos etiológicos, uma explicação que dê conta das diferentes situações clínicas encontradas, um tratamento que não apenas produza certos resultados isolados mas que, de forma articulada com a teoria e com a pesquisa clínicas, produza resultados estáveis e globais, em termos dos diferentes aspectos da vida dos indivíduos.
Apesar da incipiência teórico-metodológica das pesquisas, os pesquisadores apresentem resultados positivos em grande número de casos, e há inúmeros relatos de pais de autistas afirmando mudanças espantosamente rápidas com a aplicação de tratamentos: dieta sem glúten e caseína, e sobretudo o processo conhecido como quelação, este relacionado com a teoria da não-absorção do mercúrio, no qual são ingeridas substâncias também tóxicas mas que revelam-se capazes de capturar esses metais pesados cuja permanência prolongada no organismo causaria a intoxicação cerebral responsável pelo autismo.
Por outro lado, as pesquisas de orientação psicanalítica também vêm apresentando um grande avanço no campo da clínica do autismo nos últimos anos. A psicanálise concebe o autismo como uma posição subjetiva – coisa que, apesar da complexidade que a noção de subjetividade implica, é perfeitamente objetivável e observável na clínica – que tem uma gênese e etiologia relacionais, isto é, fruto da relação com o outro primordial, em geral o outro familiar e parental. Tal dimensão relacional não significa mera interação interpessoal e consciente, mas ancora-se em uma estruturação inconsciente. Isso esclarece um equívoco freqüente que consiste em supor que a psicanálise acusa os pais (sobretudo as mães) pelo autismo de seus filhos. As pesquisas genéticas e neurocientíficas costumam vangloriar-se de buscar em fatores biológicos (como os que examinamos acima) os elementos causais, enquanto que a psicanálise, por desconhecer ou não considerar esses fatores, os imputaria às mães. Ao acusar a psicanálise de acusar as mães, desconsidera-se a dimensão relacional e inconsciente que preside toda estruturação do sujeito humano. Não se pode acusar alguém de seu inconsciente, do que lhe escapa ao saber, mas nem por isso se proclama a irresponsabilidade subjetiva. O sujeito deve tomar conhecimento do que lhe é inconsciente e que lhe causa tantos danos em sua vida, não para pagar a pena (que ele já paga de qualquer modo), mas para pagar com menos sofrimento essa pena.
As pesquisas clínicas com o autismo em psicanálise não cessam de revelar pontos cruciais na relação da criança autista com sua família – o lugar que ela ocupa na estrutura familiar, junto ao casal parental, a posição de objeto à qual o sujeito autista adere, a dificuldade de ingressar no universo e no circuito das demandas e da fala, a dificuldade de construir uma imagem do corpo próprio, a imensa angústia diante da sexualidade, entre outros aspectos.
O tratamento fundamentado na orientação psicanalítica não isola a criança em consultório ambulatorial, como se poderia supor, junto a um psicanalista, mas é praticado em espaço aberto e coletivo, no qual a criança/adolescente autista é tratado como um sujeito cujos atos têm ou podem ter sentido, são mensagens a serem recebidas e tratadas como tais, de forma a dar uma outra resposta diferente daquela que a criança vem tendo desde o início de sua vida, permitindo a reconstrução de seus laços afetivos, volitivos e cognitivos.
Entretanto, tampouco a psicanálise já é capaz de apresentar uma teoria etiológica do autismo, uma concepção clara da formação dos fenômenos autísticos e conseqüentemente um tratamento eficaz, com resultados estáveis e irreversíveis, para os autistas.
Resta-nos, portanto, acolher sem preconceitos todas as vertentes de investigação e tratamento que se apresentarem, desde que se revelem sérias, efetivamente comprometidas com o avanço do conhecimento sobre o autismo e sobretudo com métodos de tratamento que melhorem a vida dos autistas. Esta postura deve nortear a direção das políticas públicas brasileiras da área da saúde mental de crianças e adolescentes autistas (e que sofram de outros quadros de intenso e perseverante sofrimento psíquico e quebra de laços sociais, mas neste documento tratamos especificamente do autismo), das quais passamos neste momento a tratar.
PESQUISA CLÍNICA E POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL
O campo das Políticas Públicas brasileiras na área de Saúde Mental teve, nos últimos 20 anos, um desenvolvimento inédito, porquanto tenha pela primeira vez elaborado princípios e diretrizes políticas para a Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, construídas sob a égide de uma ampla discussão entre especialistas, profissionais e pesquisadores da área, mas também com usuários e cidadãos da sociedade civil interessados na questão (cf. a III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001 em Brasília, com ampla representatividade da sociedade, e praticamente paritária entre profissionais e usuários do sistema de saúde mental brasileiro, em que, pela primeira vez, esteve em centro de pauta a saúde mental infanto-juvenil), o que confere a estas políticas publicas o coeficiente de legitimidade que a autoriza como tal e a protege de iniciativas isoladas, desacompanhadas de um debate público comparável.
Nos desdobramentos deste passo primeiro, criou-se o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil, pela Portaria GM 1608, de 03/08/2004, instância amplamente representativa, com assentos garantidos não apenas aos coordenadores estaduais e municipais de saúde mental de todo o Brasil, como também a diversos ministérios (Educação, Assistência Social, Justiça e Cultura), a entidades da sociedade civil ligadas aos usuários (Associações de Amigos de Autistas, de Pais de Autistas), a Movimentos Sociais (MAB – Movimento dos Adolescentes do Brasil), Associações como a dos Juízes e Magistrados pela Democracia etc. Mais recentemente, foi criado, também por portaria ministerial, (Portaria GM 3.211, de 20/12/2007) o Grupo de Trabalho especificamente destinado ao tema do tratamento do autismo, cuja primeira reunião teve lugar em Brasília em março de 2008.
Seguindo as diretrizes estabelecidas pelas Políticas Públicas coletivamente pactuadas e formalizadas em documentos pelo Ministério da Saúde, um grande número de municípios brasileiros, na lógica descentralizadora do SUS, que atribui a responsabilidade da assistência direta à iniciativa municipal, vem criando redes de serviços de tratamento que se baseiam na idéia fundamental de que o ato de tratar não deve implicar um isolamento ainda maior da criança, daquele que sua condição autista já lhe impõe, mas, pelo contrário, baseiam-se em uma concepção de tratamento que inclua, em suas próprias estratégias, a noção de laço social. Busca-se manter e ampliar os laços que porventura já existam e criá-los ali onde eles são ausentes ou demasiado incipientes. O tratamento deve, assim, articular-se sempre com outros recursos da comunidade em que a criança vive, a começar pela família, passando à escola e a outros espaços de convívio da comunidade. Por isso, o serviço que aplica este tipo de tratamento é chamado de Centro de Atenção Psicossocial, e tem base territorial, intensividade e complexidade, isto é, envolve vários níveis, graus e modalidades de intervenção, desde a utilização de medicamentos, as práticas clínicas baseadas no uso da palavra visando identificar e produzir sentido – práticas que comprovadamente afetam e beneficiam as crianças autistas mesmo quando elas não falam, casos em que seus atos são tomados no campo do sentido e não da irracionalidade, errância casual ou da mera ação motora – uso de objetos, brinquedos, sons e instrumentos musicais, desenho, água, materiais propícios ao manuseio, etc. A Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde está em vias de credenciar seu centésimo CAPSi.
Além disso, o CAPSi, como todo Centro de Atenção Psicossocial, tem um mandato institucional que o autoriza a dirigir-se a diferentes instâncias envolvidas no tratamento de seus usuários, não apenas instâncias do setor saúde, mas de outros setores que se revelem fundamentais ao tratamento, em uma perspectiva, portanto, intersetorial: Escola, Conselho Tutelar, Promotorias e Juizados da Infância e da Juventude, Abrigos ligados ao setor da Assistência Social, instâncias responsáveis pela concessão de benefícios, entre outros. São convocados os setores da Educação, da Justiça, da Assistência Social, da Cultura e do Esporte e Lazer, entre outros, que se revelarem relevantes em cada caso.
O Rio de Janeiro é um município que assumiu essas diretrizes decidida e imediatamente, tomando a dianteira em sua implementação no Brasil. Tracemos, em sucinto resumo, a história recente da criação da rede de serviços públicos de saúde mental, de base territorial, diários e diurnos, sem internação, intensivos, que respondem pelo tratamento de crianças e adolescentes autistas na cidade.
Em 1991 foi criado o NAICAP (Núcleo de Assistência Intensiva a Crianças Autistas e Psicóticas), unidade de saúde mental infanto-juvenil ligada ao Hospital Phillipe Pinel que, mesmo sem contar com o apoio de uma estrutura de rede, naquele momento, decidiu-se a enfrentar, no campo da saúde pública – e como expresso em sua própria denominação – a clínica com crianças autistas que não se limitasse a consultas ambulatoriais, envolvendo a permanência das crianças no serviço para atividades diversas por um tempo diurno dilatado e variável segundo as condições e exigências de cada caso.
Em 1998 foi criado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial propriamente dito da cidade, o CAPSi Pequeno Hans, na Zona Oeste (funcionou inicialmente no bairro de Realengo), área muito carente da cidade sob diversos aspectos, serviço que já completou dez anos de trabalho contínuo e que já dispõem, portanto, de resultados importantes e de indicadores consistentes para orientar a prática de tratamento de autistas em rede pública.
No ano 2000, apenas dois anos depois, iniciou-se a transformação do maior ambulatório urbano de saúde mental infanto-juvenil que este município já teve, e que era referência única em uma área enorme da cidade (todos os bairros que compõem a Baixada de Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Recreio e Vargem Grande, além de adjacências), que se chamava COIA, no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil Eliza Santa-Roza.
Posteriormente, um serviço público ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro foi transformado no CARIM, que funciona como CAPSi.
Em 2007 a Prefeitura do Rio criou seu quarto CAPSi, o Maria Clara Machado, como resultado de um longo processo de desconstrução de dispositivos hospitalares históricos que funcionavam no IMAS Nise da Silveira, complexo hospitalar-psiquiátrico (ex-Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro), tais como o Hospital Vicente Rezende, posteriormente Isabella Martins, processo que faz parte de um projeto maior de desconstrução da imensa estrutura hospitalar em que consistia o “Engenho de Dentro”, como foi por muito tempo conhecido pela população da cidade, levado a cabo pela direção do complexo hospitalar. O CAPSi Maria Clara Machado traduz o resultado desse processo, e se situa fora do espaço do hospital, na mesma área programática da cidade.
Em 2008, um outro tipo de processo, que também exigiu tempo para chegar à sua conclusão e que, ao contrário do que acabamos de descrever, partiu de iniciativas ambulatoriais isoladas, porém decididas quanto ao tratamento de crianças e adolescentes autistas e dirigiu-se a estruturá-las em um serviço de base territorial, resultou na criação do CAPSi João de Barro, no bairro-distrito de Campo Grande.
O tratamento praticado nos CAPSis da cidade pode envolver diferentes técnicas – não é esse o ponto essencial, nem o traço distintivo que o define e particulariza – e entende-se que, no campo público, a diversidade pode e deve comparecer, desde que as técnicas aplicadas se mostrem eficazes e que sobretudo, não firam os princípios e diretrizes das políticas públicas cientificamente amparadas e socialmente pactuadas. O que não se admite, nessas práticas públicas de tratamento do autismo em rede pública, sobretudo no Rio de Janeiro, mas também em muitos outros municípios brasileiros é qualquer técnica ou prática dita de tratamento que:
a) isole a criança, apartando-a de seus vínculos familiares e comunitários que, se muitas vezes se mostram difíceis ou quase impossíveis, devem se também incluídos nas estratégias de tratamento, e nunca tomados como obstáculos que essas técnicas devam evitar;
b) tome o quadro clínico como uma doença, no sentido de uma afecção demasiado específica, ou cuja etiologia a defina como um mal funcional que demande tratamento pontual, contrariando o princípio da integralidade da ação de cuidado e da tomada da criança como sujeito psicossocial, agente de um processo sempre complexo e multivetorial, jamais redutível a uma função orgânica ou psíquica isolada.
c) pretenda dar a resposta última e verdadeira sobre o autismo, com exclusão de qualquer outra, contrariando o princípio científico da necessária prudência, humildade e reverência diante do que ainda não se conhece suficientemente, e que a um só tempo exige e legitima toda e qualquer busca de saber e fazer (no caso, o fazer clínico, o cuidar e o tratar) desde que ela atenda a princípios éticos e às diretrizes políticas já vigentes no campo da saúde mental pública.
No mais firme propósito de que esta convocação produza, nos nossos destinatários, a mais pronta acolhida, e que desperte o desejo de levar adiante este grande debate público, aproximando a Ciência da Sociedade, da qual ela, em última instância, extreai as questões sobre as quais trabalha, devendo fazer retornar ao corpo social concreto o produto do saber cientificamente produzido, e no desejo de compartilhar as apreensões com a iminência da sanção de uma Lei Municipal que obriga que o tratamento prestado se faça orientar por uma única vertente teórico-clínica, desconsiderando a existência de outras, que se exercem ampla e continuamente no campo da pesquisa e da aplicação clínico-institucional pública, subscrevemo-nos, aguardando as manifestações dos colegas e anunciando, para uma data próxima, um grande Fórum de Debates sobre Autismo na Universidade do Rio de Janeiro, para o qual estamos, no momento, agenciado articuladores e organizadores, e para o qual todos os nossos destinatários são participantes chamados em primeira hora, que é esta.
30 de janeiro de 2009