Acontece amanhã, dia 30 de maio, às 18 horas, no auditório do CRP-RJ, o VII “Trocando em miúdos”, com o tema “Diversidade Sexual: O Encontro nas Diferenças”.
O evento pretende discutir questões relativas à diversidade sexual na sociedade brasileira. Entre os convidados estão Veriano Terto Jr., diretor da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), Claudio Nascimento, ativista do Grupo Arco Íris e da ABGLT e Marjorie Marchi, presidente da Associação de Trangêneros do Rio de Janeiro. Além do debate, haverá a exibição do documentário “Borboletas da vida”, de Vagner de Almeida, sobre o cotidiano de jovens homossexuais dos municípios de Austin e Nova Iguaçu.
Esta é a sétima edição do “Trocando em miúdos”, evento que é realizado pela Comissão Regional de Direitos Humanos do CRP-RJ. Ele acontece desde maio de 2005 e tem como objetivo criar um espaço onde os psicólogos podem pensar e problematizar temas relacionados à sua atividade profissional.
A entrada é franca. O Conselho fica na Rua Delgado de Carvalho, 53, no Largo da Segunda-Feira na Tijuca, Rio de Janeiro.
Informações: 2139-5438/39 | [email protected]
Borboletas da Vida
Sinopse
O filme, dirigido por Vagner de Almeida, foi realizado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, no âmbito do projeto Juventude e Diversidade Sexual. O documentário foi produzido a partir de uma seleção entre mais de 50 horas de filmagens em Austin e Nova Iguaçu, municípios da baixada fluminense.
Foram entrevistados jovens homossexuais que se vestem de mulher e vivem na periferia. Há um intercruzamento de duas situações de exclusão: a pela via da orientação sexual e a pela pobreza. Eles são “borboletas” da vida brasileira que nasceram lagartas, mas se transformaram em algo mais bonito e colorido, mesmo na situação de miséria em que vivem. Misturando sexualidades diversas, eles criam e recriam o próprio sexo e experimentam possibilidades e limites dos gêneros masculino e feminino.
O filme mostra como é possível enfrentar, com determinação, o preconceito. A luta pelo direito à diferença é bem traçada. O próprio diretor ressalta como essas pessoas brigaram para se inserir na sociedade onde nasceram. Na época das filmagens, Vagner lembra que um morador da Rua do Xuxu, em Austin, chegou a comentar “com tanta gente bonita, você vai querer pegar justamente esses lixos?”.
O filme também tem o mérito de apresentar o tema sem clichês ou paternalismo. Retrata, no período de 24 horas, a vida desses jovens e como eles “trazem a mulher na bolsa” para se transformarem em outro sexo.
Longe, porém, de reduzi-los a travestis ou transformistas, o diretor optou por apresentar como essas categorias, apesar de cômodas, podem ser vazias. Além disso, mostra como ser travesti ou transexual não implica, necessariamente, em transformar-se em profissional do sexo. O foco é mais nas transformações que cada sujeito deu a sua sexualidade.
“O filme retrata as transformações de gênero e por isso se chama Borboletas da vida. Porque esses meninos conseguem conviver com a homossexualidade deles, mas, em certo instante num fim de semana, entre às 9 horas da noite e 3 ou 4 horas da madrugada, eles se transformam completamente em mulheres. E por volta das 4, 5 da manhã, tiram a roupa e voltam a ser rapazes. É como se despedir de um casulo e colocar uma fantasia, que são suas asas de borboleta”, diz o diretor.
Na bolsa desses rapazes estão perucas, calcinhas, tamancos, pulseiras e, em certos casos, a maquiagem. “Registrei toda a construção, os truques que eles usam para se transformar em meninas”, diz Vagner.
O cruzamento entre homossexualidade e pobreza é bem nítido. Por exemplo, alguns têm dinheiro para comprar maquiagem, outros não. Outro ponto importante é a solidariedade na hora da montação, desde o empréstimo de materiais até a ajuda mútua na hora do “truque da Pirelli”, como eles chamam usar enchimentos para simular formas mais femininas.
Malena, que contribuiu com seu depoimento para o filme, enfatiza o caráter sigiloso desse processo. “Isso é até um segredo de estado. Não é todo homossexual que demonstra a questão da montação. Tem a maquiagem, o truque da Pirelli, muita coisa que você coloca para se transformar naquela mulher maravilhosa”.
Depois de “Borboletas da vida”, o expectador fica com impressão que os conceitos de homo, bi ou heterossexualidade não servem para nada.
Comentário
Imagens da homossexualidade masculina em camadas populares
Leandro de Oliveira*
Borboletas da Vida. Direção: Vagner de Almeida. Rio de Janeiro: Abia, 2004, 38 min.
O documentário focaliza a experiência e o cotidiano de jovens homossexuais em contexto de camadas populares. Realizado no bairro de Austin, no município de Nova Iguaçu (Região Metropolitana do Rio de Janeiro), esboça um quadro das vivências do gênero, da sexualidade e da violência na periferia de um centro urbano brasileiro. São apresentadas, com densidade etnográfica, algumas das formas pelas quais esses sujeitos elaboram suas vidas, lidando com a discriminação em um meio social avesso à homossexualidade.
A cena inicial mostra o centro de Austin no período diurno, a movimentação em torno da estação de trem e do comércio informal local, ambientando o expectador com o universo em que a narrativa se desenrola. Das imagens do bairro, somos conduzidos ao interior da casa e da rotina dos jovens cujos depoimentos são recolhidos – rapazes que praticam o crossdressing como forma de expressão de sua sexualidade. Os depoimentos destacam o impacto que a rejeição social à homossexualidade exerce sobre suas trajetórias biográficas.
Desemprego, atos violentos perpetrados por desconhecidos, incompreensão ou mesmo agressões sofridas no próprio círculo familiar emergem nos relatos como experiências comuns a esse segmento social, sinalizando para mecanismos de estigmatização vigentes. Embora o cenário global nos grandes centros brasileiros caminhe para uma crescente visibilização de identidades estruturadas em torno de desejos e práticas não-heterossexuais, em diferentes contextos vigoram dinâmicas de exclusão, associadas, por exemplo, a crenças religiosas. A adesão de membros da família a religiosidades cristãs emerge como elemento que acirra tensões na esfera doméstica. O risco de agressão física ou mesmo violência letal é também sombra constante que se projeta sobre suas existências. Contudo, a sujeição a diferentes formas de violência enseja respostas coletivas, tendo como um de seus efeitos a mobilização de atores sociais em torno de organizações engajadas na luta pelos direitos humanos. Configuram-se também estratégias pessoais pelas quais lida-se cotidianamente com o estigma social, como tentativas de manipulação e apagamento de sinais que pudessem identificá-los como homossexuais. O roteiro ressalta, assim, os inúmeros constrangimentos a que os sujeitos são submetidos caso visibilizem sua orientação sexual em suas redes de vizinhança, trabalho e família.
Evidencia-se também a importância de compreender como práticas homossexuais são significadas de distintas formas, em diferentes segmentos de uma mesma sociedade. Ser (ou descobrir-se) homossexual na Baixada Fluminense é diferente da experiência vivida por jovens das camadas médias urbanas nas relações com pessoas do mesmo sexo. Trata-se de um universo marcado pela dominação masculina, em que hierarquias de gênero são continuamente reiteradas. Nesse contexto, a homossexualidade é associada a uma performance feminina, em cuja composição o cross-dressing exerce papel fundamental.
A prática do cross-dressing – o uso de peças de vestuário e adereços prescritos exclusivamente ao sexo oposto – em diversos contextos culturais pode estar associada a rituais de inversão temporária da ordem, como o caso do carnaval brasileiro, ou a expressão de fantasias e desejos eróticos heterossexuais, como na cultura norte-americana contemporânea. No universo retratado pelo documentário, no entanto, essa prática é uma das formas de manifestação da orientação sexual desses jovens rapazes. A homossexualidade aparece em suas falas e em suas vidas intimamente associada à feminilidade: ela é vivenciada plenamente no exercício de uma performance feminina, particularmente pelo emprego de roupas do sexo oposto em contextos específicos de sociabilidade. Essa feminilidade é uma “natureza íntima”, que alguns desejariam poder permitir aflorar durante todos os momentos da vida, mas tentam refrear temendo as represálias que poderiam sofrer caso decidissem dar livre expressão a essa faceta de sua subjetividade. Esses rapazes, que não se consideram travestis por não modelarem seu corpo por meio de próteses e hormônios, “carregam uma mulher na bolsa”: através do recurso a vestimentas, perucas e acessórios, produzem e acionam contextualmente a feminilidade com que se identificam.
O vídeo mostra ainda algumas imagens de um dos espaços de sociabilidade em que tais expressões do gênero são possíveis – uma boate voltada para o público não-heterossexual, situada também na cidade de Nova Iguaçu. Acompanha o ritual de chegada dos jovens, o processo de maquiagem e vestimenta, etapas na montagem da persona feminina que estes colocam em cena. Apresenta-se ali um contexto onde podem dar livre curso a disposições que, em outros círculos sociais, são represadas como forma de evitar a homofobia.
Borboletas da vida consegue retratar o cotidiano desses rapazes integrando múltiplos aspectos de sua realidade – trabalho, relações de parentesco, amizade, subjetividade, experiências amorosas.
Um registro valioso, que visibiliza a experiência de um segmento social sobre o qual poucas pesquisas e estudos foram produzidos.
*Cientista Social, mestrando em Saúde Coletiva pelo PPGSC/ IMS/ UERJ.
29 de maio de 2006