Qual a pretensão do projeto de lei (nº 717/2003), de um deputado estadual evangélico do Rio, propondo a utilização do dinheiro público para um suposto tratamento da homossexualidade? O que seria esse tratamento?
Não é mais possível se apelar para a psiquiatria que não considera mais a homossexualidade como patologia, distúrbio ou perversão. Que tipo de tratamento seria proposto senão um tratamento moral? Eletrochoque? Internação? Leitura da Bíblia? Lavagem cerebral? Microcirurgia? Ou métodos comportamentais — no melhor estilo do filme “Laranja mecânica”, de Kubrick — em que se mostraria uma imagem do mesmo sexo acompanhado de punição e uma do sexo oposto junto a uma recompensa? Uma dorzinha ali, um docinho aqui e pronto. Isso não seria inconstitucional?
Essa associação do jurídico com a religião legitimando o preconceito sexual faz-nos voltar a um tempo anterior à dissociação Estado-Igreja, aos tempos das trevas, da demonização das realidades sexuais com fins de controle social. Se homem e mulher se completassem, como a chave e a fechadura, não existiria problema sexual nenhum pois cada um se satisfaria plenamente com sua cada uma. E todos não viveriam felizes para sempre porque é a incompletude que possibilita a capacidade criativa e desejante do ser humano.
Não há sexualidade sem fantasias sexuais que são tão variadas que faz toda tentativa de classificação fracassar. Não há nada de “natural” e universal na sexualidade humana extrapolando qualquer suposto objetivo de reprodução pois ela não se reduz ao genital. Ademais, “todos os seres humanos, segundo Freud, são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e na realidade o fizeram em seu inconsciente.
As ligações libidinais com pessoas do mesmo sexo desempenham um papel tão importante quanto ligações idênticas com o sexo oposto. Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo do homem por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado”. Para a psicanálise o homossexualismo não é nem uma patologia, nem uma categoria clínica, mas uma versão da sexualidade que se apresenta de múltiplas formas.
Pois bem, com esse projeto começa-se com a oferta de correção dos homossexuais subvencionada pelo Estado, parte-se à busca dos voluntários, em seguida surgem as denúncias e a cobrança dos vizinhos aos pais quando não se avisa diretamente o posto de saúde, a comunidade religiosa então se reúne e faz uma lista dos necessitados.
Aí começam a ser “tratados” todos os que não se enquadram na sexualidade religiosa e vão assim entrando na Casa Verde (cf “O alienista”, de Machado de Assis) os homossexuais, adúlteros, os masturbadores, os voyeristas (de praia, de revistas, de internet), os exibicionistas, os sádicos, os masoquistas, os fetichistas de pé, de cabelo, de pêlos, de corpo sarado, de gordinhas, de magrinhas, de pênis, de nádegas, de seios até que chegam a ser internados mais de três quartos da população.
Essa proposta propõe um dispositivo heterossexista que favorece a homofobia internalizada (de todos) ao alimentar a fantasia de conversão (seguindo o modelo da conversão religiosa espetacularmente encenada nos templos evangélicos) e ao prometer o impossível: a ortopedia da pulsão sexual. Essa terapeutização moralizante da sexualidade financiada pelo Estado levará sem dúvida ao pior.
Nesse grupo visado pela lei, que é dos mais propensos a sofrer depressão (cf Andrew Solomon em “O demônio do meio-dia”), aumentará o contingente de deprimidos, drogados (álcool, crack, prozac, ecstasy, zoloft etc.) e suicidados. Ao ser posto em prática, esse projeto discriminador e melancolizante só irá aumentar para muitos a dor de existir, o auto-ódio, a desesperança, o desamparo e “a angústia, atroz e prepotente, enterrará no crânio uma bandeira preta” (Goethe). Isso é maneira de promover o bem-estar, função da política?
Fonte: O Globo – Antonio Quinet (psicanalista e psiquiatra)