No horário nobre das telenovelas, assistimos ao trágico viver de uma mulher que é cotidianamente agredida e ameaçada por seu marido. Agora, ele a vendeu ao homem que a ama e é amado por ela e este aceitou o achaque. A trama novelística nos coloca diante do fenômeno da violência doméstica, infelizmente corriqueiro no Brasil de nossos dias. Nunca é demais registrar nosso inconformismo, no esforço para que tal fenômeno não se banalize, pois expressa as relações sociais de gênero, em nossa sociedade, relações desiguais e violentas entre mulheres e homens, onde a mulher continua sendo a mais vulnerável.
O reconhecimento, por parte do Estado, de que a dimensão da violência praticada contra a mulher é da maior importância, não se restringindo às quatro paredes do lar, veio com a instalação, há quase 20 anos, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher, em São Paulo. O conceito da igualdade e da dignidade da pessoa humana foi em seguida consagrado pela Constituição da República.
O Brasil perfilou-se, então, com as propostas mais arrojadas de combate à violência doméstica e sexista. Sabemos, contudo, e vemos diariamente que ainda falta atenção dos poderes públicos, de forma a garantir eficiência na defesa dos direitos fundamentais da mulher-vítima.
O poder público municipal, por exemplo, tem uma contribuição concreta, a exemplo da criação das casas abrigo, articuladas com as Delegacias de Defesa da Mulher e a assistência jurídica gratuita em cada município.
Alguns dados de 2003 demonstram que, no município de São Paulo, de um total de 63.482 ocorrências, 25,5% correspondem a ameaças, 23,03% a lesão corporal dolosa. À violência psicológica soma-se à física. Estes dados, sobre a ocorrência dos vários tipos de violência, por certo são incompletos porque nem sempre a mulher-vítima registra a ocorrência na delegacia .
O Poder Legislativo tem se mostrado sensível a esse flagelo, a partir de 1988, quando da elaboração da Constituição, momento em que a bancada feminina teve uma atuação digna de sua representação. Recentemente, projeto de lei de iniciativa da deputada Iara Bernardi foi sancionado pelo presidente da República, introduzindo artigo que altera o Código Penal e tipifica o crime de violência doméstica. Nesta oportunidade, um novo projeto de lei vinha sendo objeto de nossas preocupações. Ao tomarmos conhecimento, o projeto, aprovado pelo Senado Federal, aguardava a sanção do presidente da República. Nele, a alteração pretendida destinava-se ao Código Civil, nos seguintes termos:
“O abandono urgente do lar, em virtude de iminente risco à sua integridade física ou moral, ou à de seus filhos, não acarretará a perda de direitos para o cônjuge, no caso de posterior separação judicial, desde que decorra de grave conduta do outro cônjuge e seja seguido do pedido de separação de corpos ou de afastamento temporário da morada do casal, a ser formulado nos trinta dias seguintes ao abandono.”
Mesmo com enormes deficiências técnicas, o projeto obteve a aprovação do Senado Federal. Ficou extraordinariamente prejudicial à mulher vítima de violência e sua prole. Restringia conquistas, enfim, era inconstitucional. Louvem-se as boas intenções, mas é preciso cautela ao aprovar projetos destituídos de técnica e de estudos mais aprofundados. O veto presidencial veio em boa hora, após manifestações de entidades temerosas e atentas à preservação dos direitos conquistados.
E aqui nos perguntamos: qual atitude deveria ser adotada pela personagem da novela para romper com a agressão física, moral e psicológica? Acessar a Justiça e fazer valer o seu direito de afastar o agressor da casa familiar.
Fonte: O Globo – Adriana Gragnani (socióloga e advogada) e Norma Kyriakos (advogada e procuradora do Estado)