O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, em ação conjunta entre a Comissão de Orientação e Fiscalização (COF), a Comissão Regional de Direitos Humanos e o Núcleo de Psicologia na Socioeducação traz, nesta nota, algumas considerações pertinentes ao exercício profissional no contexto das medidas de acautelamento socioeducativo e da execução das medidas socioeducativas privativas ou restritivas de liberdade e em meio aberto.
O trabalho na socioeducação apresenta desafios constantes para a Psicologia, considerando a complexidade dos processos envolvidos na atuação de uma política de base territorial e intersetorial. Atentamos, em especial, para as tensões entre o caráter pedagógico, por atender sujeitos de direitos, com garantia de proteção integral por sua situação peculiar de desenvolvimento, e o caráter sancionatório que resulta em privação ou restrição de liberdade, diante da prática infracional. É responsabilidade da/o psicóloga/o assegurar o respeito, a dignidade e a integridade dos sujeitos, bem como contribuir para a eliminação de quaisquer formas de violência, exploração, discriminação, entre outras, previstas no Código de Ética do Profissional de Psicologia (Resolução CFP nº 10/2005) e nos documentos do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (Resolução 119/2005 e documento do CONANDA de 2006; Lei 12.594 de 2012).
Reafirmamos que o trabalho da Psicologia deve estar sempre pautado nos preceitos éticos, expressos no Código de Ética Profissional do Psicólogo, Resolução CFP nº 010/2005, bem como em acordo com as demais Resoluções do CFP que orientam as atividades desenvolvidas neste campo de trabalho, como as que se referem à produção de documentos (Resolução CFP nº 006/2019) e guarda de documentos (Resolução CFP nº 001/2009). É importante considerar também as diretrizes de pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, referentes a Direitos Humanos e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes (Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça Juvenil – Regras de Beijing, 1985; Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, 1990; Princípios Orientadores das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil – RIADE, 1990).
A política de socioeducação é construída a partir do trabalho articulado junto a outras categorias profissionais como Serviço Social, Pedagogia, Agentes Socioeducadores e operadores do Direito. O trabalho é desenvolvido por equipes multidisciplinares, agregando diferentes saberes, numa perspectiva interdisciplinar devendo ser integrada em seu caráter de promoção do atendimento aos/às adolescentes. É de extrema relevância que a profissional de psicologia desenvolva práticas respaldadas em referenciais teóricos, metodológicos e éticos reconhecidos pela ciência psicológica e que sejam pertinentes ao seu campo de saber.
Com o objetivo de acompanhar e orientar a atuação da Psicologia nas diversas políticas públicas, o Sistema Conselhos de Psicologia por meio do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) produz referências técnicas orientativas nos diferentes campos de atuação. Entre elas, destacam-se “Referências Técnicas para atuação de psicólogos no âmbito das medidas socioeducativas em unidades de internação” (2010) e a Referências Técnicas para atuação de psicólogas em programas de medidas socioeducativas em meio aberto (2012) as quais afirmam o conjunto de princípios e práticas que servem de orientação ao trabalho, entre eles:
A relação do psicólogo com os demais membros da equipe de trabalho e outros profissionais envolvidos no atendimento e/ou trabalho institucional é de parceria, socialização e construção de conhecimento, respeitado o caráter ético e o sigilo conforme o Código de Ética Profissional do Psicólogo, não devendo haver relação de subalternidade na equipe multiprofissional.
A relação com o Poder Judiciário e os demais profissionais do sistema de Justiça deve ser pautada pela fundamentação técnica qualificada e pelo respeito à especificidade do trabalho do profissional, e não pela relação de subserviência ou temor. (CREPOP, p.23, 2010).
É fundamental que a profissional realize a análise das demandas de qualquer solicitação documental, para que possam ser respondidas de forma a respeitar os limites da intervenção psicológica, em acordo com a Resolução nº 06/2019 do CFP, que estabelece os tipos e finalidades de documentos a serem produzidos pela Psicologia. A psicóloga na execução das medidas de acautelamento e socioeducativas estabelece vínculo de acompanhamento ao adolescente, de forma que, ao produzir discurso documental sobre o trabalho, deve observar o dispõe o Código de Ética:
Art. 2º: É vedado ao psicólogo:
- k) Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos resultados da avaliação (Código de Ética Profissional, 2005)
A atuação da psicóloga no atendimento ao/à adolescente no âmbito da execução das medidas socioeducativas tem por objetivo o acolhimento, a orientação e busca de ações que possam contribuir para o desenvolvimento do sujeito. O sigilo profissional é um pressuposto básico do trabalho da construção do vínculo de confiança, e oferta de um atendimento no qual possam ser trazidas as questões subjetivas como processo histórico, social, político e econômico, elementos que atravessam a realidade de cada adolescente e compõem sua subjetividade. Nesse sentido, o trabalho da psicologia mediado pelo vínculo e pautado na garantia do sigilo, se distancia da possibilidade de avaliar o/a adolescente que está sendo acompanhado/a em um serviço socioeducativo.
Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.
Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo.
Parágrafo único – Em caso de quebra do sigilo previsto no caput deste artigo, o psicólogo deverá restringir-se a prestar as informações estritamente necessárias (Código de Ética Profissional, 2005).
É comum, no exercício profissional em que há interface com a Justiça, a expectativa de uma prática avaliadora aos olhos do campo do Direito. Entretanto, é importante apontar que a Psicologia pode contribuir trazendo outros saberes, ampliando o olhar sobre as múltiplas formas de se constituir sujeito na nossa sociedade. O saber psicológico acerca da produção de subjetividades e das relações humanas pode contribuir na tomada de decisão pelos/as operadores/as do Direito, não sendo, entretanto, o objetivo de nossa prática profissional propor decisões judiciais.
Os registros documentais têm o objetivo de garantir a continuidade do acompanhamento realizado, devem ser redigidos em linguagem clara e técnica, sendo dirigido às psicólogas e à equipe multidisciplinar a qual a profissional faz parte. Os registros também ficam à disposição do Conselho Regional de Psicologia em caso de eventuais processos éticos, conforme artigo 4ª, § 2º da Resolução 01/2009.
- 2º O registro documental deve ser mantido em local que garanta sigilo e privacidade e mantenha-se à disposição dos Conselhos de Psicologia para orientação e fiscalização, de modo que sirva como meio de prova idônea para instruir processos disciplinares e à defesa legal.
Além disso, os registros documentais são instrumentos de acesso aos/ os usuários/as do serviço sobre seu atendimento, conforme o Código de Ética Profissional (2005), é dever das/os psicólogas/os:
- g) Informar, a quem de direito, os resultados decorrentes da prestação de serviços psicológicos, transmitindo somente o que for necessário para a tomada de decisões que afetem o usuário ou beneficiário;
No âmbito da política socioeducativa, tem direito às informações de atendimento o adolescente, sua família, bem como demais profissionais que compõem a rede intersetorial de atenção e cuidado ao sujeito. É importante que as informações sejam transmitidas ao/a adolescente e à sua família pela profissional que os acompanha, de modo que as dúvidas e questionamentos sejam elucidados.
As informações sobre os sujeitos atendidos pelo profissional da Psicologia, endereçadas a outras categorias e atores da política devem ser prestadas através de documentos produzidos de acordo com a resolução 06/2019. De acordo com o Código de Ética, a responsabilidade pela guarda dos documentos é da profissional e da instituição onde o serviço é prestado.
Cabe, ainda, destacar que o compromisso da Psicologia com a Socioeducação vem sendo reafirmado através de posicionamentos ético-políticos e na construção de documentos que formalizam as orientações à categoria e a sociedade sobre a atuação profissional neste campo. Neste sentido, o Núcleo de Psicologia na Socioeducação do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, realizou, em 2017, a Primeira Conferência de Socioeducação, no Rio de Janeiro, quando as profissionais puderam apresentar as questões que perpassam suas práticas, bem como pensar a construção das estratégias para lidar com as adversidades.
A violência institucional se apresenta de forma complexa nos espaços de privação ou restrição de liberdade. Em um contexto mais amplo, a violência é um fenômeno multifatorial complexo que se constrói em uma estrutura social, histórica e política, assumindo papel na dinâmica das relações comunitárias, sendo replicada dentro de uma instituição responsável por promover também a sanção a adolescentes que transgridem as normas sociais. Em última instância, é uma questão que esbarra nos limites da Psicologia, não devendo ser tolerada nem naturalizada. Em se esgotando as possibilidades de intervenção e diálogo no nível institucional, cabe ao profissional recorrer aos órgãos de controle externo e de justiça, sem prejuízo de outras ações quando se fizerem necessárias.
Nesse sentido, é importante que a(o) psicóloga(o) possa contar com parcerias das instituições e órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, não pelo viés de denúncia objetivando punição, mas para que, diante das dificuldades possam ser produzidas discussões ampliadas com os diversos atores das políticas públicas e de toda a sociedade em busca de efetiva construção de soluções para o avanço das práticas socioeducativas (Trabalho da Psicologia na Socioeducação do Estado do Rio de Janeiro (p. 23, 2019).
Dito isso, é fundamental que a profissional de Psicologia esteja comprometida com o Código de Ética e em respeito aos princípios e pactuações relacionados aos Direitos Humanos e a defesa dos direitos da criança e do adolescente. É nesta perspectiva que a Psicologia cumpre a sua missão de garantir que os sujeitos sejam inseridos em políticas públicas de cuidado e ao mesmo tempo sejam provocados a serem atores de suas vidas.
Referências:
O Trabalho da Psicologia na Socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, Disponível em: http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2019/07/miolo_livro.pdf Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Referências técnicas para atuação de psicólogos no âmbito das medidas socioeducativas em unidades de internação. Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) (2010), Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/referncias-tcnicas-para-atuao-de-psiclogos-no-mbito-das-medidas-socioeducativas-em-unidades-de-internao/ Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Referências Técnicas para Atuação das Psicólogas em Programas de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) (2012), Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/referencias-tecnicas-para-atuacao-das-psicologas-em-programas-de-medidas-socioeducativas-em-meio-aberto/ Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Resolução 010/2005 – Código de Ética Profissional do Psicólogo, Disponível em: https://atosoficiais.com.br/lei/codigo-de-etica-cfp?origin=instituicao Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Resolução 001/2009 – Dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da prestação de serviços psicológicos. Disponível em: https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-1-2009-dispoe-sobre-a-obrigatoriedade-do-registro-documental-decorrente-da-prestacao-de-servicos-psicologicos?origin=instituicao&q=01%202009 Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Resolução nº 119 de 11 de dezembro de 2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE – https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/download/resolucao_119_conanda_sinase.pdf Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, Documento da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, (2006) Disponível em: http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-imprensa/publicacoes/sinase.pdf Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE Lei nº 12.594 de 18 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm Acessado em: 01 de dezembro de 2021.
[1] Aprovada na 798ª Reunião Plenária Ordinária do CRP-RJ em 03 de dezembro de 2021.