Esta reportagem faz parte da série em homenagem aos 15 anos do Crepop.
O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro – CRP-RJ, visando homenagear os 15 anos do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas – Crepop – segue com sua oitava reportagem sobre a atuação da psicologia no âmbito das políticas públicas, tendo como base um mergulho em algumas das Referências Técnicas lançadas.
Nesta edição, falaremos a partir da Referência Técnica para Atuação de Psicólogas (os) na Educação Básica e temos como convidadas as psicólogas Raquel S. L. Guzzo (CRP 06/577) e Marilene Proença (CRP 06/6133) que participaram da construção dessa RT.
Esta Referência, lançada em 2019 é uma edição revisada (a 1ª edição é de 2013), que procura abordar a educação básica como direito humano fundamental, em uma perspectiva crítica, pensando uma educação emancipadora, pública, gratuita e de qualidade, pautada na diversidade humana e protagonista nos enfrentamentos a preconceitos, racismos, pobreza e distribuição de renda.
A educação como direito fundamental foi, durante décadas, alvo de disputa na sociedade brasileira, prevalecendo a concepção de uma educação distinta a depender da classe social. Somente com a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro define a educação como direito básico e universal. Desde então, se reconhece avanços no acesso ao ensino, porém quanto a sua qualidade os avanços aconteceram de forma tímida, e ainda bastante marcados pelos determinantes econômicos, políticos e sociais.
Recentemente, a conjuntura política do nosso país instalou um quadro de desinvestimento em políticas públicas que, aliado aos ataques à legitimidade da produção do conhecimento científico e ao questionamento da própria ideia da educação como direito universal, nos coloca diante de uma situação de sucateamento e desmonte. A Lei 13.935/2019, que incorpora na rede pública de Educação Básica profissionais da Psicologia e do Serviço Social, ainda carece de regulamentação, e a inclusão do custo destes profissionais no FUNDEB ainda está sob ameaça.
Por isso, a Psicologia reafirma seu compromisso com os princípios de uma educação democrática, somando esforços junto àquelas (es) que fazem a defesa veemente e cotidiana da educação como um direito humano.
A Psicologia pode contribuir de forma significativa no contexto escolar, propondo a superação de análises individualizantes e medicalizantes, pautando reflexões acerca da complexidade das relações sociais que incidem nos processos de aprendizagem. Ao lidar com os sujeitos e suas subjetividades, a(o) psicóloga(o), em trabalho conjunto com professores e a comunidade escolar como um todo, pode favorecer o reconhecimento das dificuldades de aprendizado, as questões relacionadas à evasão escolar, a violência nas escolas, entre outras questões.
Segundo Raquel Guzzo, professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas ( PUC-Campinas) nos programas Graduação e Pós-graduação em Psicologia, é “determinante para a sociedade e para a nossa profissão a inserção da Psicologia nas Políticas Públicas. Em um país extremamente desigual como o nosso, o perfil profissional precisava mudar. Desde 1980, com o esforço de várias gestões do CFP e conselhos regionais que esse movimento começa a amadurecer e as políticas de saúde, de assistência e outras começam a abrir espaços para profissionais da Psicologia. A Educação chega mais tarde, em primeiro lugar com a discussão nacional sobre a Psicologia nesse campo e depois com o movimento de aprovação da Lei 1935/2019 que agora precisa ser regulamentada. Embora necessária essa inclusão profissional nas políticas públicas, o processo é trabalhoso e pressupõe um esforço coletivo muito bem articulado. Sem dúvidas, o caminho de dar visibilidade às referencias técnicas para diferentes áreas e campos de inserção profissional foi uma iniciativa importante”.
Para Marilene Proença, professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, “a educação é uma das mais importantes políticas públicas para a garantia de direitos humanos. Como diria o grande educador e patrono da educação brasileira, Paulo Freire: ‘a leitura da palavra, é a leitura do mundo’. Portanto, a escola é um dos mais importantes instrumentos de conscientização e de crítica para a garantia de direitos, de produção e de disseminação de valores sociais e democráticos e de socialização por abarcar a diversidade humana. Portanto, cabe à (ao) psicóloga(o) quatro importantes ações nesse campo e que estão presentes nas RT: a) o compromisso ético-político com a escola democrática, para todos, todas e todes, laica e referenciada socialmente; b) a identificação e a busca de referenciais interpretativos que venham a responder às necessidades da escola e do processo de escolarização dos estudantes, da relação com suas famílias e com a comunidade; c) o conhecimento das possibilidades de sua atuação na escola e nas políticas intersetoriais e d) participação coletiva para enfrentar os desafios por meio de uma prática qualificada e crítica. Para fortalecer a política pública educacional, a (o) psicóloga(o) será fundamental a participação nas lutas pela educação enquanto direito humano e social e no avanço da inserção do conhecimento da psicologia para compreensão do processo educacional”.
As duas psicólogas que gentilmente nos concederam entrevista exclusiva para esta reportagem, tiveram papéis determinantes na elaboração desta RT, em suas duas edições.
Guzzo explicou que “o processo de elaboração desta RT se desenvolveu em distintas etapas. Em primeiro lugar uma pesquisa foi encomendada e alguns dados foram fornecidos ao grupo de pessoas responsáveis pela elaboração da RT. Discutimos muito as informações e, sob a coordenação da Dra. Marilene Proença, debatemos o formato da RT, a responsabilidade de cada membro e após várias reuniões, com a assessoria técnica do CFP/ CREPOP, fomos finalizando um texto que resultou nas RT em seu formato original (2013), o qual foi ampliado e ajustado alguns anos depois (2019)”.
Proença contou que teve “a oportunidade de participar de todo o processo de organização desta RT, desde a revisão das questões do questionário online enviado aos profissionais da área; me fazendo presente em vários estados brasileiros em contextos de grupo focal e de rodas de conversas com psicólogos escolares e educacionais, até a coordenação da equipe nacional, na condição de Conselheira do XV Plenário do CFP, reunida para a análise da pesquisa nacional, elaboração da minuta para consulta pública e realização do documento final. A RT em sua primeira edição foi lançada em 2013, no CRP-SP e contou com evento transmitido nacionalmente. Também participei da equipe revisora, em 2018 da RT, que culminou com a sua segunda edição, em agosto de 2019, lançada no XIV Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, sob a coordenação da Conselheira Federal do XVIII Plenário, Norma Cosmo. Foi muito instigante participar de todas as etapas do processo e ver como o documento final das Referências realmente contou com a participação de um grande número de profissionais de várias regiões do Brasil, garantindo as regionalidades e as diversidades das redes de ensino e ao mesmo tempo construindo princípios gerais e fundamentais para uma atuação ético-política da psicologia no campo da educação básica”.
Guzzo explicou ainda que quando foi convidada a escrever um texto sobre “Psicologia em Instituições Escolares e Educacionais” no Ano da Psicologia na Educação instituído pelo CFP em 2008, ficou “muito feliz pois, finalmente a Psicologia voltada à Educação em geral e presente nas escolas começaria a ser pautada pelas entidades da Psicologia brasileira. Sempre me dediquei à construir esse campo para profissionais de psicologia, seja supervisionando estágios, seja trabalhando para a inserção da psicologia nas políticas educacionais de nosso pais, pela experiência vivida no exterior e na Associação Internacional da Psicologia Escolar. Desde 1990 quando fundamos aqui no Brasil a Associação Brasileira de Psicologia Escolar, em 1991, quando trouxemos ao Brasil o primeiro Congresso Brasileiro de Psicologia Escolar ( I CONPE), quando em 1994 trouxemos ao Brasil pela primeira vez a um país do hemisfério sul o Congresso Internacional de Psicologia Escolar, quando fundamos a Revista de Psicologia Escolar e Educacional, quando criamos o Grupo de Trabalho da ANPEPP sobre a mesma temática, eu esperava que o sistema conselho reconhecesse a importância dessa área de atuação e assumisse em âmbito nacional a disseminação dessa proposta para toda a categoria”.
“E isso começou a acontecer em 2008, quase dez anos depois, com o Ano da Psicologia na Educação e, posteriormente, com a elaboração das referencias técnicas para a atuação de profissionais de Psicologia na Educação Básica. A importância dessa produção para mim, foi a visibilidade que foi possível para a categoria profissional de um campo extremamente importante e de um valor incontestável para o desenvolvimento de crianças e adolescentes com a contribuição da Psicologia. Em nossa formação básica, estudamos Desenvolvimento Humano e esse processo acontece em espaços onde a Psicologia precisa estar – a escola é um espaço, por excelência, de desenvolvimento das crianças e adolescentes. A Psicologia precisa estar inserida nesse lugar”, complementou a psicóloga.
Para Marilene Proença, “o CREPOP do Sistema Conselhos de Psicologia (CFP e CRPs), criado em 2006, tem por objetivo promover a qualificação da atuação profissional de psicólogas(os) que atuam nas diversas políticas públicas: educação, saúde, assistência, justiça, esporte, álcool e outras drogas, questões relativas à terra, mobilidade humana e trânsito; relações raciais, dentre outras. Desde a aprovação, o CREPOP inaugura uma metodologia de pesquisa em que foi possível conhecer os marcos legais de uma determinada política pública; o georreferenciamento dos profissionais e as práticas desenvolvidas em várias áreas das políticas públicas brasileiras. A metodologia empregada possui várias etapas:questionário online aos profissionais; grupo focal presencial; análise de especialistas da área; consulta pública; revisão final do documento. Com esta metodologia, foi possível construir as Referências Técnicas em várias áreas da Psicologia, sendo uma delas as Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica”.
E complementou que “a pesquisa para construção das Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas (os) na Educação Básica foi realizada pelo CREPOP, em 2009, fruto das discussões do Ano Temático da Educação Psicologia: Profissão na Construção da Educação para Todos do Sistema Conselhos de Psicologia. Este evento reuniu em torno de 5.000 psicólogas(os) em todo o país e produziu o primeiro documento de diretrizes para a atuação na educação e a Carta de Brasília com os princípios par a atuação de psicólogos na Educação Básica. A pesquisa de 2009 recolheu dados quantitativos e qualitativos de psicólogas(os) que atuam na educação básica, em todos os Conselhos Regionais do país, e teve a participação de 299 psicólogas(os) da área. A elaboração das Referências contou com a presença de especialistas de várias regiões do país, sob a coordenação do Conselho Federal de Psicologia”.
Este documento tem uma grande importância pois, pela primeira vez, as(os) psicólogas(os) da área contam com diretrizes para realização de seu trabalho, de forma crítica e propositiva, possibilitando um importante conjunto de propostas para sua atuação, subsidiando profissionais e gestores municipais, estaduais e federais.
Inclusive, Guzzo pontuou que “a Psicologia na Educação para ser viabilizada, materializada, precisa da inserção profissional da área da Educação, por concurso e destinada a atuar nas escolas, junto aos professores, às famílias e às crianças e jovens. O trabalho resulta em um acompanhamento próximo e constante das crianças e jovens, nos espaços educativos, em reuniões com professores no cotidiano da escola e contato direto com a família. Não vejo como a Psicologia estar no campo da educação sem estar diretamente nos espaços onde a educação acontece. Assim, é preciso que estejamos presente nas atividades cotidianas em que a educação acontece, até para nos incorporarmos à rotina de professores, gestores, estudantes e familiares. Existe resistência a essa inserção, pois ainda somos, por razões históricas, associados a profissionais da saúde estabelecidos em espaços da saúde/doença – UBS e hospitais. Há ainda muito a ser conquistado nesse campo e seguimos na luta”.
Proença destacou que “a luta pela participação da Psicologia na Educação Básica, enquanto política pública, data da fundação do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (1987); desde então, por intermédio do Conselho Federal de Psicologia e de seus regionais, a Psicologia tem atuado nacional e regionalmente na luta pela educação no país, juntamente com os setores mais organizados da sociedade. Um dos marcos dessa luta foi a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que pudesse garantir a universalização de acesso, o sucesso escolar, a gestão participativa e a formação de professores em nível superior, aprovada em 1996. A trajetória dessa luta da Psicologia com a Educação é marcada por muitos Congressos Nacionais e pela constituição da Conferência Nacional de Educação, em 2010. A CONAE deu origem ao Plano Nacional de Educação, constituindo um conjunto fundamental de estratégias e metas decenais para todos os níveis educacionais do país. A Psicologia participou ativamente na aprovação das teses que constituíram o PNE por meio do documento “Contribuições da Psicologia para a CONAE- 2010.” https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/03/cartilha-CONAE-web_x2x.pdf
“Atuar em uma política pública constantemente atacada pelo ideário neoliberal e pelas concepções discricionárias e antidemocráticas é um enorme desafio. Mas a Psicologia tem construído sua trajetória e poderá fazer a diferença com seu projeto de sociedade e de profissão em busca da transformação social e das pessoas que constituem essa sociedade. Tomando as palavras de Paulo Freire, finalizo dizendo: ‘Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”, finalizou, contundente, Marilene Proença.
*Raquel Guzzo também é Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (2018-2020). Atual Editora Chefe da Revista Estudos de Psicologia ( Campinas). Atua na área de Programas de Atendimento/Acompanhamento Comunitário, discutindo a formação e intervenção profissional, segundo fundamentos da Psicologia Crítica, Intervenções Preventivas e Psicossociais, Psicologia da Libertação, Processos de tomada de Consciência .
*Marilene Proença Rebello de Souza é professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE e presidente da Academia Paulista de Psicologia – Cadeira no. 02, Lourenço Filho.
Para ler estas Referências basta clicar aqui http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2019/10/educacao_basica.pdf
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SEGURANÇA PÚBLICA: POLÍTICA PÚBLICA É TEMA NESTA REPORTAGEM DA SÉRIE “CREPOP 15 ANOS”
ESPECIAL 15 ANOS DE CREPOP: POLÍTICAS PÚBLICAS DA SAÚDE SÃO OS TEMAS DA VEZ
15 ANOS DE CREPOP: POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS AOS POVOS TRADICIONAIS É O TEMA DESTA EDIÇÃO