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Nota sobre o PL 565/2019 em trâmite na ALERJ


Data de Publicação: 25 de maio de 2021


O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, através de sua XVI Plenária, vem por meio desta trazer apontamentos sobre o Projeto de Lei Nº 565/2019, de autoria dos deputados Márcio Pacheco e Samuel Malafaia, que dispõe sobre o programa de atuação e acolhimento das comunidades terapêuticas como política pública permanente no estado do Rio de Janeiro e dá outras providências.

Considerando o documento conjunto “10 Motivos contrários à atuação das comunidades terapêuticas junto à população em situação de rua (portaria 69/2020)” e considerando o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2017 -, assinada conjuntamente pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Ministério Público Federal, chamamos atenção para alguns pontos do referido projeto de lei em debate no âmbito do Rio de Janeiro. 

O próprio PL define comunidades terapêuticas como entidades privadas sem fins lucrativos e, partindo dessa definição, vai propondo um conjunto de medidas que produziriam, como efeito direto, a centralização desses espaços na intersecção das redes SUS e SUAS, sendo supostamente aptas a receber financiamento público de ambas. Tal ponto se complexifica com o fato de que, ao receber financiamento múltiplo enquanto entidade privada, há diretamente posta uma opção da gestão por esse serviço em detrimento dos CAPS AD, dos CAPS III, dos CAPS III AD, assim como de outros dispositivos e serviços de acolhimento para adultos em equipamentos públicos. 

O projeto de lei apresentado cria um campo de indistinção entre Saúde e Assistência Social, indo na contramão das normativas que vêm sendo implementadas para estas duas políticas públicas que, junto com a Previdência Social, compõem o tripé da Seguridade Social brasileira. Há um movimento progressivo de delimitação das ações destas políticas públicas, por exemplo, a Lei do CEBAS, Lei 12.101/2009 que distingue a certificação das entidades beneficentes em três áreas diferentes: Saúde, Assistência Social e Educação. Assim, cada entidade deve recorrer ao seu Ministério específico para conseguir o seu CEBAS, e cada uma com requisitos próprios. A promoção do trabalho intersetorial, envolvendo dispositivos de diferentes políticas, deve ocorrer respeitando-se as atribuições de cada um. Uma entidade não pode ser ao mesmo tempo da Saúde e da Assistência Social. 

Também são distintos os Fundos Municipais que financiam a Assistência Social e a Saúde, com regulações próprias e com controle social exercido através do seus conselhos específicos. Os fundos de Assistência Social não podem financiar serviços, programas e projetos que não estejam tipificados pela Política de Assistência Social, conforme explicita o parágrafo 2ª do artigo 8 do referido PL: O acolhimento de que trata a presente Lei não se confunde com os serviços e programas da rede de ofertas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)”.

O orçamento da Política de Assistência Social é co-financiado pelos três entes federativos, e depende de deliberação e fiscalização por parte dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Assistência Social. Importante ressaltar que a referida política ainda não possui um percentual mínimo de orçamento obrigatório e tem sofrido com  grande redução nas transferências do governo federal para os municípios, criando-se situações de descontinuidade nos serviços. A possibilidade de financiamento das Comunidades Terapêuticas com verbas da Assistência Social, além de ilegal, por não se configurar serviço tipificado por esta política e por não ter aprovação das instâncias de Controle Social, agravaria a situação de desfinanciamento dos serviços do SUAS.

O financiamento das Comunidades Terapêuticas com recursos do SUAS criaria uma situação de excepcionalidade no Rio de Janeiro, visto não haver previsão normativa no nível federal para utilização de recursos advindos do FNAS (Fundo Nacional de Assistência Social) para este financiamento, podendo gerar responsabilizações para gestores públicos e conselheiros municipais, pois a lei estadual não criaria a autorização para gastos com recursos originários da União. 

Assim, as articulações com a Assistência Social devem estar circunscritas à intersetorialidade, baseada exclusivamente em ações específicas de cuidado, sustentadas na garantia e promoção dos Direitos Humanos e configuradas dentro das atribuições e diretrizes de cada serviço. Criar uma figura supostamente híbrida, ao contrário, reduziria as potencialidades de articulação e compartilhamento entre políticas, ao mesmo tempo que, historicamente, conforme relatórios de inspeção realizadas, as Comunidades Terapêuticas têm apresentado uma série de violações de direitos, que demonstram sua inviabilidade na promoção de saúde e bem estar de cidadãos que devem estar em liberdade e integrados ao território. Cabe ainda ressaltar que A criação de serviços na Assistência Social cabe aos conselhos daquela política, que têm a atribuição de aprovar a política de assistência social. A transferência de recursos do FNAS se dá por blocos de financiamento para o conjunto de serviços, programas e projetos, devidamente tipificados, não constando da Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Resolução CNAS 109/2009) as Comunidades Terapêuticas.

Em seu artigo 11, quando trata das obrigações da instituição estipula em seu inciso: “VIII – permitir e definir datas para a visitação de familiares, bem como acesso periódico aos meios de comunicação com a família do interno”; apontando controle sobre as relações e restrição de comunicação das pessoas que ali estariam. O que é reforçado no artigo 27: “As instituições devem proporcionar ações de capacitação à equipe, mantendo o registro. I – garantir ao residente o acesso a meios de comunicação, quando houver necessidade justificada; II – garantir o contato do residente com a família através das visitas prédeterminadas conforme o projeto da Instituição, desde o início da inserção na entidade”.

O PL aponta a possibilidade de atendimento a crianças e adolescentes, bem como a convivência com o responsável de forma integral neste espaço: Art. 14º – Será garantida a convivência integral da criança com a mãe e/ ou responsável do adolescente que estiver em acolhimento institucional para recuperação de dependência química ou alcoólica. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017) §1 o A mãe e/ ou responsável do adolescente será assistida por equipe especializada multidisciplinar”. Proposta que está em desacordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA – Lei 8.069/90) que estabelece serviços especializados para infância e adolescência, pela situação peculiar de desenvolvimento.

Seguindo nesta linha o PL sugere o acolhimento de adolescentes, estabelecendo a criação de serviços paralelos aos existentes na política: Art. 16º. As Comunidades Terapêuticas que atendem adolescentes, devem desenvolver programas de acolhimento familiar ou institucional; com destaque para o parágrafo terceiro “§3º Os critérios de admissão, permanência e saída, o programa de acolhimento da entidade e o PAS devem receber a anuência prévia, por escrito, do acolhido e, quando houver, de seu familiar ou pessoa por ele indicada.” que dispõe de acolhimento de adolescente sem determinação judicial única forma regulamentada pelo ECA para efetivação de acolhimento de criança e adolescente.

O artigo 25º aponta um conjunto de atividades a serem desenvolvidas pelas equipes das CT’s que aqui nos cabe atentar. Os cinco pontos apresentados são exatamente ipsis litteris as atribuições do CAPS III definidas pela portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002 do Ministério da Saúde. Aqui é crítico perceber que não se sustenta a argumentação de financiamento de um serviço privado que terá como atribuição EXATAMENTE AS MESMAS FUNÇÕES de serviços públicos já existentes e preconizados nas redes de atenção psicossocial dos territórios. Tal ponto nos convoca a perceber os interesses privados em gerir toda a rede de atendimento das políticas públicas, propondo funcionar como regulador da porta de entrada para os serviços de saúde e de assistência social, além de se colocar como supervisor e responsável por capacitar profissionais das duas políticas.

Observa-se a construção de uma instituição que fere a lógica de serviços que se articulam, mas não se sobrepõem, de políticas que se complementam na intersetorialidade mas que não se organizam com grandes estruturas de equipamentos que pretendem suprir todas as necessidades dos sujeitos em um só local. Além disto, trata de criar uma instituição total e híbrida, com o objetivo de receptar recursos públicos que poderiam e deveriam fortalecer os equipamentos inteiramente compostos enquanto serviços públicos.

Cremos indubitavelmente não caber a um serviço privado o papel de regulador da rede de atenção de serviços públicos, tampouco ser responsabilidade de tais equipes o matriciamento das redes de atenção compostas no território e mais uma vez aqui chamamos atenção que já existem serviços e equipamentos públicos, cuja atuação preconizada nas diferentes normas operacionais, já supre todas as especificidades apresentadas no projeto de lei como atribuições de comunidades terapêuticas.  

Cabe questionar a proposição de um serviço privado que não se propõe ao tratamento em saúde, visto que elenca como atividades específicas ofertadas “…laborterapia ou terapias ocupacionais” (inciso XII do artigo 11); e apresenta a criação de um instrumento “projeto de acolhimento” que não é instrumento previsto nem na política de saúde, nem na política de Assistência Social, especialmente nos moldes apontados pelo artigo que o descreve (art 19), trazendo dois itens relacionados a espiritualidade, reforçada no artigo 21 como método de recuperação. Além disto, embora seja apresentado como um projeto de “desenvolvimento da espiritualidade” (…) “respeitando a laicidade religiosa” (art.21), o artigo 43, traz as Comunidades Terapêuticas Confessionais.

Cabe questionar também a proposição de um serviço que não se enquadra na tipificação dos serviços de acolhimento da Política de Assistência Social, conforme aponta o artigo 2º, já citado. A demanda de acolhimento institucional previsto na tipificação dos serviços socioassistenciais tem sido pauta das trabalhadoras do SUAS e dos movimentos sociais ligados ao trabalho de atendimento à população em situação de rua. A falta de equipamentos públicos de acolhimento de adultos, esbarra nas questões orçamentárias das políticas públicas ou da prioridade das gestões para o atendimento de qualidade a tal população. 

Compreendemos mais que nunca na necessidade vital de fortalecimento das políticas públicas e dos serviços da rede de atenção psicossocial, de modo que, cremos que o referido projeto de lei se compõe como uma falácia, que justifica sua existência em atribuições que já são de serviços públicos. Diante destes apontamentos, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, através de sua XVI plenária, se afirma contrária à aprovação do referido projeto de lei e convoca toda a categoria de profissionais de Psicologia a entender, se implicar e defender os serviços públicos já preconizados em nossas diferentes políticas públicas como também combater continuamente as tentativas de desmonte dos nossos grandes sistemas únicos de Saúde e Assistência Social.

 

 

Rio de Janeiro, 25 de maio de 2021