Era uma noite em que as cantadas águas de março se anunciavam nos céus do Rio de Janeiro. Cidade onde muitos sons disputam cotidianamente os dias e as noites. Sons variados, compostos por um misto por vezes indiscernível entre alegrias, dores, começos e continuidades. Sonoridades que são a vibração pura de uma cidade aberta para escutas atentas. Um som específico, contudo, se fez ouvir numa rua escura da Estácio e com isso, abriu um espaço em nosso tempo presente. Em 14 de março de 2018 a vereadora Marielle Franco foi assassinada em uma emboscada junto com seu motorista daquela noite, Anderson Pedro Gomes.
Socióloga formada pela PUC-RJ e mestra em Administração pública pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Marielle antes de ser vereadora era uma estudiosa das políticas públicas e em especial, das composições da segurança pública no Rio de Janeiro. Defensora de direitos, atuava em organizações coletivas desde que, moradora do complexo da maré, perdeu uma amiga vítima de bala perdida. Mãe, negra, lésbica e nascida e criada em favela, Marielle inevitavelmente trazia em seu corpo diversos atravessamentos que apontavam para a ocupação de múltiplas trincheiras. Interseccionalidade é o nome que damos ao conjunto de diferentes pautas que aparecem na vida e no trabalho da vereadora. Em seu curto mandato violentamente interrompido, ela propôs uma série de projetos, vários deles aprovados, entre eles: Espaço coruja (PL 417/2017) que consiste numa proposta de amplificação das creches públicas, Dossiê Mulher Carioca (PL 555/2017) que prevê organização dos dados estatísticos sobre mulheres atendidas pelas políticas públicas no Rio de Janeiro; Assistência Técnica Pública e Gratuita para habitações de interesse social (PL 642/2017) que prevê assistência pública e gratuita para famílias pobres em relação ao planejamento e regularização de seus imóveis; Assédio não é passageiro (PL 417/2017) criação de uma campanha de enfrentamento ao assédio e violência sexual em espaços públicos entre outros projetos. Marielle era presidenta da Comissão Permanente de Defesa da Mulher e, poucas semanas antes do assassinato foi escalada para representar a Câmara do Rio em Brasília, para acompanhar a Intervenção Federal na Segurança Pública no Estado fluminense. Em seu trabalho cotidiano ela também acolhia, orientava e acompanhava dezenas de famílias de policiais, bem como uma grande variedade de pessoas cujos direitos estavam sendo violados.
Após três anos, o crime segue sem respostas e, apesar do inevitável luto que mancha definitivamente a história do Rio de Janeiro, há ecos de seu trabalho que seguiram e seguem produzindo efeitos em todo o território do Rio de Janeiro, mas também em todo o país e em contextos internacionais, incidindo em instituições, coletivos e inspirando uma série de pautas relacionadas à defesa dos direitos.
Há um certo Drummond que fala sobre flores que nascem sorrateiras apesar do asfalto cinza e duro. Perceber as insistentes flores, ainda que por vezes pequenas, é necessário impulso de vida ao mesmo tempo em que há um famoso samba da Mangueira que evoca o quanto amplificamos nossos modos de vida quando compomos desde múltiplas vozes. “Brasil, chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês…”
Seguimos em luto
Mas seguimos em frente
E seguimos desde a psicologia, pautando a defesa e a garantia dos direitos para todas as pessoas
Marielle e Anderson, Presentes!