“Reflexões pertinentes entre a Psicologia e o Pacote Anticrime” foi o tema do debate promovido pelo CRP-RJ, com apoio da Defensoria Pública, no dia 7 de novembro no Centro do Rio de Janeiro. Mediado por Thiago Melício (CRP 05/35915), conselheiro do CRP-RJ e professor da UFRJ, o evento teve como objetivo promover um amplo debate sobre a inserção da Psicologia na política de segurança pública e como o Pacote Anticrime, em tramitação no Congresso Federal, convoca a (o) psicóloga (o) brasileira (o) a um posicionamento ético-político.
O debate contou com a participação do psicólogo Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (CRP 05/26077), conselheiro-presidente do CRP-RJ, do deputado federal Marcelo Freixo, de Caroline Bispo, advogada da “Redes da Maré” e fundadora da associação “Elas Existem – Mulheres Encarceradas”, e de João Luis da Silva, cofundador do grupo “Eu Sou Eu”, articulador social da ONG Rio de Paz, estudante do 6º período de Direito e sobrevivente do Sistema Prisional.
Pedro Paulo abriu o debate pontuando a importância de Psicologia brasileira refletir sobre o Pacote Anticrime, uma vez que a Segurança Pública é um grande campo de trabalho psi, com profissionais trabalhando nas políticas públicas, nas polícias, nos Sistemas de Justiça e Penitenciário. Ainda segundo o conselheiro-presidente do CRP-RJ, é preciso pensar no impacto que o projeto de lei, caso aprovado, terá sobre a população, principalmente a parcela mais fragilizada e vulnerabilizada.

Pedro Paulo Bicalho, conselheiro-presidente do CRP-RJ
“Esse pacote foi produzido com embasamento teórico insuficiente; carente de análise de impacto social, ele carece de uma análise de qual vai ser o impacto social dessas operações e não é construído democraticamente. Lembremos que o campo da segurança pública é composto por algumas estruturas importantes, como o CONASP [Conselho Nacional de Segurança Pública], o CNPCP [Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias] e o CNPTC (Comitê Nacional de Prevenção e Combate a Tortura), ou seja, temos uma série de organismos onde a proposta desse pacote não foi em momento algum discutida. Propor algo desta magnitude sem ouvir os conselhos nacionais que representam essa discussão diz respeito a certo modo de construção e de alteração das nossas leis, onde não se levam em conta nossas estruturas democráticas de participação social”, criticou.
Especificamente sobre os impactos da aprovação do Pacote Anticrime sobre as práticas psicológicas, Pedro Paulo defendeu a importância de refletir sobre o tipo de subjetividade produzida pelas medidas propostas no projeto, considerando “a quem afeta e porque afeta e os atravessamentos que produz na vida dos indivíduos desta sociedade”.
“O Pacote Anticrime é a materialização de uma racionalidade e de uma lógica em que se quer enfrentar o crime com mais prisões, mais armas, mais endurecimento da execução penal e mais guerra. A Psicologia brasileira precisa pensar o que essa racionalidade presente no Pacote diz sobre a racionalidade que também tem construído sujeitos. Pois as nossas subjetividades (maneiras de pensar, sentir e agir) também são construídas pelas mesmas lógicas que pedem mais prisão, mais guerras, mais armas. Nós, psicólogos, precisamos entender o Pacote Anticrime e o que leva a ele, para entender como estamos sendo forjados como sociedade”, concluiu.

Marcelo Freixo (ao microfone) e Thiago Melício
Marcelo Freixo, membro da comissão parlamentar que analisa o projeto, afirmou que o Pacote Anticrime “é uma falácia”. Segundo ele, “este não é um pacote anticrime, é um pacote penal. Um pacote anticrime teria que pensar, por exemplo, na reformulação das polícias. Teria que ter alguma proposta preventiva, teria um debate muito mais amplo do que um pacote penal. Parece óbvio, mas quando se chama um pacote penal de pacote anticrime, já se constrói uma ideia de que se resolve o crime através do Sistema Penal”.
De acordo com Freixo, após realizar cerca de dez audiências públicas e convidar diversos especialistas de correntes políticas distintas, a comissão parlamentar construiu “uma maioria que, através do debate técnico de cada proposta, chegou a um resultado muito interessante. Nós sabíamos que teríamos derrotas, mas não imaginávamos que teríamos tantas vitórias. Por exemplo, pontos importantes: conseguimos tirar o ‘excludente de ilicitude’. Ontem entregamos o relatório final para o [deputado] Rodrigo Maia, mas não será mais o Pacote Anticrime proposto pelo [ministro] Sérgio Moro. É importante ressaltar que o que vai a plenário é o nosso relatório e não mais a versão do Moro”.
O deputado frisou outro ponto específico: “Nós derrubamos a plea bargain, que é uma medida muito dramática que poderia triplicar a população carcerária brasileira num tempo muito curto, porque coloca uma negociação direta entre o Ministério Público e o réu, numa realidade em que 65% do território nacional não tem Defensoria Pública”.
Fazendo uma análise mais conjuntural, Freixo defendeu que “a ideia de que encarcerar mais diminui a violência é uma falsidade que já vemos há algumas décadas que não funciona. Mas é uma ideia que está muito forte na cabeça do brasileiro hoje, e que está prevalecendo no Congresso. Se o cárcere for mais duro, se as pessoas não quiserem ser presas, elas não vão cometer crime. Essa é a ideia central por trás deste Pacote. Por fim, eu gostaria que nós prestássemos muita atenção também no pacote apresentado pelo ministro Paulo Guedes essa semana, pois a retirada de direitos, o Estado mínimo, a redução do papel e da capacidade do Estado de agir numa sociedade desigual como a nossa, isso sim tem relação direta com o debate sobre violência e segurança”.

João Luiz, do grupo “Eu Sou Eu”
João Luiz, por sua vez, falou sob a perspectiva de quem é afetado pelo Sistema Penitenciário. “O Estado nos mata quando não oferece saúde, quando não oferece segurança, quando não oferece condições de dignidade mínimas para que a pessoa possa cumprir sua pena pelo crime praticado. Esse não é um pacote anticrime, é um pacote pró-morte. As ideias propostas nesse pacote são tão criminosas quanto os crimes que as pessoas que estão presas cometeram, porque violam uma série de direitos e interferem numa série de princípios e garantias de direitos das pessoas presas. A pessoa que está privada de liberdade, não deveria estar privada de dignidade”, argumentou.
O estudante de Direito frisou, ainda, a importância da Psicologia nesse debate. “Não há uma pessoa que passe pelo Sistema Penitenciário, seja pelo tempo que for, que saia incólume. Esses espaços humilhantes, degradantes, de muita violação de direito, de muito desrespeito à dignidade, deixam marcas perpétuas. Por isso, precisamos pensar neste pacote também pela perspectiva da saúde mental”, afirmou. “É um erro pensar que o que acontece dentro da cadeia, fica dentro da cadeia. Tudo lá é reflexo da sociedade que estamos criando e certamente extrapola os muros da prisão. De forma mais simplificada, basta pensar nas famílias dos presos, nos agentes penitenciários, nos familiares dos agentes penitenciários. Essas pessoas circulam no ambiente prisional e fora dele. Até a doença que temos lá dentro, sai para o lado de fora. Tudo é uma engrenagem, não podemos esquecer disso”, concluiu o palestrante.
Caroline Bispo pontuou questões relativas à invisibilidade de determinados grupos sociais, como mulheres negras encarceradas. “A população feminina negra corresponde a 95% da população feminina encarcerada. Nesse sentido, entramos na questão de que sabemos exatamente para quem é este pacote e para que ele vai servir. É muito interessante falarmos que esse pacote não funciona ou não vai funcionar. Ele vai sim. Esse sistema é criado para funcionar: por isso, temos 600 mil presos em 2014 e pulamos para 725 mil presos em 2016. Então, o sistema está funcionando. Funciona quando deixamos de falar de escravidão, quando não ensinamos nossas crianças a se defender. Sob qualquer perspectiva, o racismo estrutural e institucional está no cerne dessa problemática”, explicou.

Caroline Bispo, ao microfone
“Um grande desafio que temos é mudar, adequar o nosso discurso para que as pessoas, principalmente as pessoas que são afetadas por essa realidade, possam entender. Porque falar de racismo estrutural e de abolicionismo penal não é compreendido. Eu moro em Guadalupe e, lá, esse discurso não chega. Eu tento explicar para minha família e tenho dificuldade. Então, é importante, sim, conseguirmos pensar sob a perspectiva do outro”, elucidou a advogada.
PACOTE ANTICRIME
O Pacote Anticrime, proposto no começo do ano pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, prevê alterações em 14 legislações, incluindo Código Penal e de Processo Penal. Alguns pontos propostos originalmente – e alvos de grande controvérsia – são: (1) Prisão em segunda instância antes que o caso chegue ao STF ou STJ, com nítida ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência; atualmente, a Constituição prevê que alguém só pode ser preso se houver flagrante ou após o processo transitado em julgado; (2) Plea bargain, que é uma proposta de acordo entre Ministério Público, juiz e o acusado. Por meio desse dispositivo, o acusado se declara culpado e não passa por processo; (3) Excludente de Ilicitude, com a qual se poderia livrar de punição agentes das polícias e Forças Armadas que cometessem excessos por “medo, surpresa ou violenta emoção”; (4) Aumento da pena máxima de 30 para 40 anos; e (5) Aumento discricionário ou desproporcional dos lapsos para progressão de regime, que viola o princípio constitucional da individualização da pena e ignora o crescimento exponencial das taxas de aprisionamento no Brasil, especialmente por crimes contra o patrimônio; (6) Adoção de medidas de estímulo à posse e porte de armas de fogo, responsáveis por mais de 70% das mortes violentas no país; (7) Medidas de endurecimento da execução das penas como os modelos de segurança máxima ou os que implicam em isolamento e restrição de visitas; entre outros.