“Não é possível pensar uma política de drogas focada na questão das drogas”. Uma das primeiras frases proferidas pela médica assessora da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai na reforma da política de drogas daquele país, Raquel Peyraube, deu, já de início, o tom que seria adotado por toda a sua apresentação, na mesa de debates “Drogas e Proibicionismo: você tem medo de quê?”, uma das mais provocativas do X Seminário Regional de Psicologia e Direitos Humanos e IV Seminário de Psicologia e Políticas Públicas.
“Fomos ensinados a pensar a questão das drogas como um problema de saúde e criminal. Mas, na verdade, essas são suas consequências, seus danos, e não o problema”, disse a especialista em Uso Problemático de Drogas, com formação em Psiquiatria, Toxicologia e Psicoterapia Psicanalítica nos temas de Infância, Adolescência e Exclusão Social, pela Faculdad de Medicina de la Universidad de la República (Uruguai). “Pessoas não morrem em decorrência do uso de drogas, mas da política de drogas”, continuou.
Única palestrante da referida mesa, Peyraube destacou a responsabilidade dos profissionais da psicologia diante da problemática. “A psicologia tem alcançado a possibilidade de ser uma conspiradora pelo bem público. Todas as disciplinas relacionadas com a saúde têm a ver com o bem público, não apenas com o indivíduo, que também faz parte do bem público, mas com um bem superior, porque este indivíduo está inserido em um contexto que está sobredeterminado pelas políticas públicas. Mesmo se você trabalha em um consultório, e de uma perspectiva individual. Vocês, como psicólogos, também são parte dessa política, do problema ou da saída do problema. Não importa se vocês trabalham um bem individual, coletivo, social, macro ou micro, vocês são cidadãos. E cidadania inclui direitos, mas também muitas responsabilidades”, defendeu a médica.
Para ela, um impacto positivo sobre o assunto depende de se mudar o eixo da compreensão, da análise sobre o mesmo. “De uma perspectiva macro, a problemática das drogas pode ser entendida como um problema geopolítico que se manifesta no nível social, de saúde e criminal. Questões definidas em algumas partes do mundo afetam outros países”, afirmou Peyraube. Embora o mundo todo seja afetado, os países da América Latina são afetados mais profundamente, segundo ela, que também é assessora do Instituto de Regulación y Control del Cannabis (IRCCA), do Uruguai. “Ninguém pode dizer a um país o que é que ele precisa para sua população”, defende a especialista, lembrando que as Convenções de Direitos Humanos são hierarquicamente superiores às Convenções de Drogas.
“O Uruguai descriminalizou a maconha em plena ditadura, 1974. Eu não concordo com descriminalização, apenas. O que tem que haver é legalização”, enfatizou a assessora do IRCCA. Para ela, é “perverso” apenas descriminalizar o uso, uma vez que, para exercer este direito, o usuário precisa cometer o crime de recorrer ao tráfico, que permanece ilegal. “Nós não fizemos uma legalização da maconha. Fizemos uma reforma da nossa política pública”, disse, referindo-se ao fato de o Uruguai ter regulamentado, em 2013, a produção, o comércio e o consumo da Cannabis no país. “Nossa lei não inclui somente a produção e comercialização lícita da substância para todos os usos: industrial (fibra e alimentos), medicinal e adulto. E não vamos falar mais em uso ‘recreativo’, porque não é certo que todo o uso adulto é recreativo, muitas vezes há também dependentes. Nem todos os usos precisam ser recreativos, alguns são feitos com medicação”, discerniu. Ela condenou ainda o uso do termo “viciado”, afirmando que este, além de construir um estereótipo, é uma forma altamente discriminatória de se referir ao usuário de drogas.
Enfática em sua crítica ao modelo proibicionista, Peyraube falou sobre o quão “desumanas e ineficazes” são as estratégias de intervenção determinadas pela lógica belicista, como a “repressão abusiva e violenta” contra usuários e, particularmente, contra alguns setores da população, determinando verdadeiras políticas de extermínio. “Uma guerra que tem quase 50 anos e tem sido mais do que tudo contra as pessoas, sobretudo contra as pessoas mais vulneráveis”, destacou. Ela abordou ainda outros danos sociais e individuais da “guerra às drogas”, como a prevenção inadequada – cuja orientação é evitar o contato com substâncias, sem agir sobre fatores que poderiam impedir o desenvolvimento de usos problemáticos – e os “tratamentos de má qualidade, com pouco ou nenhum rigor científico ou ético, que violam os direitos humanos das pessoas que usam drogas”.
A uruguaia apontou alguns indicadores que evidenciam que o resultado geral da “guerra as drogas” é um “fracasso escandaloso”. Aumentaram: o número de usuários e dependentes de drogas; a periculosidade das drogas por seus efeitos e por adulteração; as consequências indesejáveis, com afetação da saúde física, psíquica e social; as violações de direitos humanos e civis; a violência e os crimes relacionados ao mercado da droga; as prisões de pessoas por uso, posse e microdistribuição, levando à superpopulação e superlotação de presídios; a estigmatização e exclusão social; redes de tráfico; a lavagem de dinheiro e outros crimes econômicos; a corrupção em todos os níveis, além dos custos sociais e do Estado.
O objetivo da lei, segundo Peyraube, não é resolver questões que envolvem o uso problemático de drogas, “que vai continuar sendo do campo de trabalho social, medicina, sociologia, economia, antropologia e todas essas assinaturas que estudam o mal estar na cultura modelos de inscrição na cultura, busca do prazer”. O que a lei visa é “criar uma mudança significativa no cenário social, agindo em alguns dos seus fatores condicionantes e limpando as interferências que só agravam o problema”, explica. “Também visa proteger as estruturas democráticas, e atuar em alguns aspectos econômicos relacionados ao problema”, completa.
Sobre o que chamou de Regulação Responsável, a especialista destacou os seguintes aspectos, que foram bases fundamentais para o processo realizado no Uruguai: campanha maciça nos meios de comunicação; informação rigorosa e verificável; resposta ponto a ponto a críticas e objeções e argumentos racionais e compreensíveis. “Através da regulamentação da Cannabis, foi criada uma política social abrangente que não existia, aceitando um fato instalado além do que as drogas nos possam parecer a nível pessoal. Não podemos misturar política doméstica com política pública”, defende Peyraube.
Política doméstica versus Política pública e Idealismo moral versus Idealismo humanitário
A dificuldade de se realizar uma reforma na política de drogas no Brasil, segundo a médica uruguaia, reside, sobretudo, no fato de, aqui, predominar o que ela chama de “política doméstica”, que seria aquela que cada um determina para sua própria casa, de acordo com sua moral e seus valores. “A política doméstica tem muita força no Brasil, e é confundida com política pública. Estou falando de quando um religioso decide com uma visão para uma coletividade, ou uma moral, na política pública”, criticou. “Isso não é justiça social, não é inclusão social, porque não respeita as diferenças de que se nutre a democracia”, enfatizou a médica, para quem a política pública deve ser “um enorme guarda-chuva para toda a população, não apenas para aqueles que são como nós”.
Para isto, segundo a uruguaia, é preciso discernir claramente o idealismo moral e o idealismo humanitário. “O idealismo moral é para uma parte da população, deixando de fora todos os diferentes. É uma moral judaico-cristã, mas branca e ocidental, e de classe média profissional, que não inclui todo mundo: um modelo muito restrito, uma moral que devemos ajustar”, distinguiu. “É diferente de idealismo humanitário, que não tem diferenças para todas as pessoas, todas as escolhas religiosas, políticas. E as políticas públicas têm este objetivo, devem ter esta base: o idealismo humanitário”, defendeu. “A moral hegemônica é violenta por sua própria essência, na medida em que não reconhece os pensamentos, sentimentos e cultura dos outros, mas também apaga as nuances que alimentam a vida democrática”, encerrou Peyraube. Estava dado o recado.
Dezembro de 2015