As dezessete comunidades que formam o Complexo da Maré vêm sofrendo com o histórico processo de descaso do poder público, que trata aquele complexo como laboratório de políticas públicas sem continuidade, tendo em vista a existência, naquela localidade, de diferentes equipamentos públicos muitas vezes precarizados pelas sucessivas administrações.
A situação agravou-se em junho de 2013, com a incursão na região do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE) e que resultou na morte de dez moradores e de um capitão do BOPE. A partir dessa data, diversos dispositivos político-repressivos foram criados para transformar o território da Maré em um “Território de Exceção”, sobretudo com a publicação do Decreto de Garantia de Lei e Ordem (GLO) que viabilizou a entrada da Força de Pacificação no dia 30 de março de 2014.
Desde essa data, os moradores da Maré convivem, em sua vida cotidiana e no mesmo cenário, com soldados armados e fortes aparatos militares. A insustentabilidade do Projeto de Pacificação, seja pelo viés econômico, seja pelo viés do cerceamento da liberdade, inclusive a de expressão, tornou-se mais problemática com a existência de inúmeros moradores feridos e mortos por armas de fogo que acusam os soldados da Força da Pacificação por esses ferimentos e mortes (Ouça a esclarecedora entrevista na Central 3 – Edicão de 27/02/2015, Central Autônoma #50, com a diretora da ONG Redes da Maré sobre a situação da Maré).
A Comissão Regional de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro vem a público expressar a sua preocupação com a naturalização da utilização de tais aparatos, como se estivéssemos em situação permanente de guerra e como se fossem os moradores os grandes inimigos do restante da população. Atentemos também para o fato de que, na grande mídia, a presença de tanques de guerra e de soldados com armamentos pesados “patrulhando” ostensivamente essas (e outras) comunidades é noticiada como medida necessária e natural para a manutenção da ordem pública e combate ao tráfico de drogas.
Como nós, psicólogas (os), sabemos, a publicização/repercussão de uma determinada interpretação sobre os fatos e a consequente divulgação desse único “olhar por frestas estreitas” produz efeitos de subjetivação, ou seja, produz subjetividade hegemônica e acrítica. Nessa ótica, o ato do dia 23 de fevereiro último – “Protesto em favor da vida no Complexo da Maré” –, organizado e convocado por moradores como uma forma de chamar a atenção da sociedade para os mais de dez baleados naquele complexo de comunidades, somente no mês de fevereiro, foi reprimido desmedida e violentamente pela Força de Pacificação e pela Polícia Militar com bombas de efeito moral e tiros de fuzil, segundo depoimento público de vários moradores. Pelo governo estadual e pela a grande mídia, o ato foi desqualificado por supostamente ter sido infiltrado por narcotraficantes, que teriam promovido o tumulto, e, por isso, a manifestação teria sido reprimida para a segurança e garantia de circulação dos que usam a Linha Expressa Amarela.
Para os movimentos sociais e para diversos moradores (Leia aqui a entrevista de uma ativista e moradora da Maré), a ação de repressão foi arbitrária e desmedida, provocando pânico e a ocorrência de duas mortes confirmadas. Reiteramos e apelamos para que todos os psicólogos do Rio de Janeiros – ancorados em nosso Código de Ética Profissional e na noção constitucional de direitos para todos, igualitariamente – repudiem a mensagem simbólica que o Estado emite e reitera (tanto para os habitantes dessas comunidades como para os demais segmentos da sociedade) ao fazer uso continuado de armamentos pesados e tanques de guerra dentro de um bairro popular da cidade do Rio de Janeiro: a de que o Complexo da Maré constitui-se em um “Território de Exceção”, que seus moradores são considerados cidadãos de segunda classe e, portanto, excluídos de direitos e matáveis.
Para além da necessária apuração das responsabilidades e dos efetivos motivos de repressão tão violenta à manifestação, com armas de fogo e equipamentos pesados, é necessário sublinhar e refletir sobre os impactos atuais e futuros na formação subjetiva dos moradores dessa e de outras comunidades, sobretudo nas crianças e jovens que convivem cotidianamente com políticas de criminalização da pobreza, cerceamento da liberdade de ir e vir e cujo contato com o Estado é estabelecido somente por meio de seus aparelhos e aparatos de repressão.
Março de 2015