Minuta da Resolução CONAD Nº 12 /2014*
O Conselho Regional de Psicologia – 5ª Região (RJ) repudia a regulamentação das Comunidades Terapêuticas e reafirma sua posição contrária à destinação de recursos públicos para instituições privadas, o que contraria inteiramente as resoluções da 14ª Conferência Nacional de Saúde (2011) e da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial (2010) que estão em vigor e garantem o não financiamento público de Comunidades Terapêuticas (CTs). A regulamentação proposta pelo CONAD está baseada em modelos manicomiais e em princípios religiosos e moralistas e abre precedente para que este tipo de instituição funcione à revelia das determinações do Ministério da Saúde.
A Lei 10.216 de 6 de abril de 2001 garante a proteção e o direito das pessoas portadoras de transtornos mentais (inclusive por uso danoso de álcool e outras drogas) por princípios como, por exemplo, o da descentralização, que prevê o fortalecimento das redes psicossociais de atenção à saúde, pautadas na territorialização e nas redes de serviços locais, de forma a prestá-los o mais próximo possível das áreas de convívio social dos usuários. Tais redes de atenção têm o intuito de detectar as desigualdades existentes e ajustar de forma equânime e democrática suas ações às necessidades da população.
Contudo, já nas considerações iniciais, a minuta propõe uma natureza não pública e, portanto, não articulada aos serviços do SUS ou do SUAS, desvinculando-se do compromisso com os direitos garantidos pela Constituição Federal, após anos de lutas e conquistas dos movimentos sociais, haja vista o considerando abaixo:
“CONSIDERANDO que as entidades que realizam o acolhimento de pessoas com problemas decorrentes do abuso ou dependência de substância psicoativa não são equipamentos de saúde, mas de interesse e apoio dos sistemas de saúde e de assistência social;” [grifo nosso]
Apresentaremos a seguir outras considerações acerca de alguns pontos constantes da Minuta em tela, bem como a Nota de Repúdio anteriormente divulgada em 1º de dezembro de 2014 pelo CRP-RJ.
A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (2003) e a Portaria do Ministério da Saúde Nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) indicam, em suas diretrizes, o desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos e a diversificação das estratégias de cuidado nas ações de prevenção e de tratamento das pessoas que apresentam problemas decorrentes ao uso de álcool e outras drogas. Contudo, o artigo 2º da Minuta que define as características das instituições que serão regulamentadas apresenta em seu item IV:
“Art. 2º. IV – oferta de Programa de Acolhimento que emprega a estratégia da abstinência;”
A RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) possui também como diretriz o desenvolvimento de atividades no território, favorecendo a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania, com ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários, seus familiares e sociedade civil. Além disso, a RAPS prevê atendimentos de urgência e emergência em leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais, além de unidades de CAPS III com funcionamento 24h.
Contudo, a minuta permite internações por períodos que extrapolam os limites aplicados pelo SUS para internações psiquiátricas (de no máximo 45 dias), consentindo o retorno da lógica manicomial, como se pode ler abaixo:
“Art. 6º § 1º O acolhimento não poderá exceder o limite de 12 (doze) meses no período de 24 (vinte e quatro) meses.
§ 2º A fim de se evitar a institucionalização, no período de até seis meses subsequente ao desligamento do último acolhimento, somente poderá ocorrer novo acolhimento mediante justificativa fundamentada da equipe da entidade, decisão que deverá ser inserida no PIA.
§ 6º Quando houver impossibilidade de realização da avaliação médica prévia e desde que não haja risco de morte da pessoa, o acolhimento poderá ser feito de imediato, caso em que a avaliação médica deverá ser providenciada em até 7 dias.”
A Minuta de Regulamentação ainda permite a internação de adolescentes a partir dos 13 anos, como descrito no artigo 10:
“Art. 10 Não será admitido o acolhimento de crianças, assim consideradas aquelas com até 12 anos de idade incompletos.”
Este artigo fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, quando aponta a internação como meio “tratar” o uso abusivo de substâncias psicoativas por adolescentes, afastando-os de seu convívio familiar, escolar e comunitário, fragilizando os vínculos e reforçando a institucionalização.
Além disso, o Art. 14 da Minuta prevê entre as atividades “terapêuticas” do Programa de Acolhimento o desenvolvimento da espiritualidade:
“Art. 14 Atividades de desenvolvimento da espiritualidade são aquelas que buscam o autoconhecimento e o desenvolvimento interior, a partir da visão holística de ser humano, como parte do método de recuperação, objetivando o fortalecimento pessoal e de valores fundamentais para a vida social e pessoal, assegurado o disposto nos incisos VI e VII do art. 5º da Constituição Federal.”
Ora, esse artigo da minuta contraria o Princípio da Laicidade da Constituição Federal, citando o Art. 5º em uma visível confusão entre o direito ao exercício religioso e sua obrigatoriedade como fundamento da cura. [Grifos nossos]
“Art. 5º da Constituição Federal – 1988 – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.”
Por fim, o artigo 15 da Minuta, cita a possibilidade dos internos fazerem trabalhos laborais, como “atividades de promoção do autocuidado e da sociabilidade”. O relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: Locais de internação para usuários de droga do Conselho Federal de Psicologia (2011), realizada simultaneamente em 25 unidades federativas do país, em um total de 68 unidades de internação de usuários de drogas, constata que:
“O trabalho assume, nesta proposta de tratamento, a mesma adjetivação dada pelo manicômio e pelas prisões, o caráter de puro imperativo moral. Trabalha-se para combater o ócio, para limitar a liberdade e submeter à ordem. Mas, também, trabalha-se para gerar lucro para outrem, trabalha-se sem direito a remuneração ou a qualquer forma de proteção. A laborterapia, neste caso, assume caráter análogo ao trabalho escravo.” (Página 192 do Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: Locais de internação para usuários de droga do Conselho Federal de Psicologia – 2011)
Esta hipótese confirma-se no Art. 16 §4º da minuta:
“Art. 16 § 4º Os eventuais resultados econômicos provenientes das atividades previstas neste artigo deverão ser aplicados nas finalidades institucionais da entidade, sobretudo naquelas voltadas aos projetos e programas educacionais, culturais, artísticos, recreativos, esportivos, assistenciais e de reinserção social dos acolhidos.”
Diante do exposto, o Conselho Regional de Psicologia / RJ formaliza seu posicionamento contrário à Regulamentação das Comunidades Terapêuticas por ir de encontro à Estratégia de Redução de Danos como o eixo orientador dos cuidados às pessoas com problemas relacionados ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Dessa maneira, consideramos que a regulamentação proposta pela Minuta fere os princípios da Lei 10.216/2001, subtraindo o direito adquirido ao tratamento preferencial em serviços comunitários de saúde mental, voltados ao exercício da autonomia e à promoção da convivência social.
Entendemos, outrossim, que tal regulamentação significaria um enorme retrocesso em termos de garantia de direitos ao acesso às Políticas Públicas não segregacionistas, não institucionalizantes, laicas e baseadas nos Princípios Básicos dos Direitos Humanos.
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* As sugestões e críticas ao texto da Minuta podem ser enviadas, por e-mail, para o endereço [email protected]. A consulta ficará aberta até o dia 28 de fevereiro de 2015.