O CRP-RJ realizou no dia 7 de dezembro, em parceria com a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ), a Justiça Global e a Associação Pela Reforma Prisional (ARP), o primeiro encontro do Fórum de Discussão sobre os Manicômios Judiciários do Rio de Janeiro. O evento ocorreu no Hospital de Custódia Henrique Roxo, em Niterói.
O Fórum é resultado de visitas realizadas, no segundo semestre de 2009, em três hospitais de custódia do estado do Rio de Janeiro, para discutir os relatórios e a própria situação nessas unidades. O objetivo é estabelecer um dispositivo permanente de construção coletiva e democrática que possa avançar na adequação dos manicômios judiciários aos princípios do SUS e às diretrizes previstas na Lei nº 10.216/2001.
Abrindo o evento, o diretor do Hospital de Custódia Henrique Roxo, Marcos Argolo, destacou que já vêm ocorrendo mudanças no debate. “Temos aqui presentes os agentes penitenciários, personagens importantes nesse processo. E o próprio fato de o evento acontecer dentro do hospital mostra que essa instituição está aberta a discutir a mudança desse modelo de assistência psiquiátrica”.
A conselheira do CRP-RJ Wilma Mascarenhas explicou que o Conselho faz parte de um grupo de trabalho interinstitucional de Saúde Mental, composto também pelo GTNM/RJ, Justiça Global e outras instituições.
“O mote desse GT foi a discussão das políticas públicas no Rio de Janeiro, e voltamos nosso foco para o tratamento psiquiátrico em instituições totais. A origem dessa escolha foram as inspeções do CRP-RJ e outras instituições a hospitais do Rio, nos quais se constataram as péssimas condições a que estão submetidos os trabalhadores e, principalmente, os usuários”, afirmou, acrescentando que o manicômio judiciário circunscreve dois tipos de instituições totais: o manicômio e a prisão. “Há um duplo caráter de institucionalização e opressão: ao estigma do louco, soma-se o do criminoso”.
Relatórios de visitas aos hospitais de custódia
Foto dos palestrantes Flávia Freire, Wilma Mascarenhas e Rafael Dias.
Flávia Freire, Wilma Mascarenhas e Rafael Dias, na sequência, apresentaram seus relatórios de visitas aos hospitais de custódia.
Após a mesa, representantes de instituições que realizaram as visitas aos hospitais apresentaram seus relatórios. Wilma Mascarenhas, representando o CRP-RJ, falou sobre a visita ao Hospital de Custódia Heitor Carrilho, em que foi constatada a existência das chamadas “trancas” (celas solitárias), condições de salubridade inadequadas, banheiros sujos, úmidos e sem vasos sanitários (no lugar, havia um buraco no chão, o chamado “boi”), iluminação precária, celas coletivas e superlotadas, com pacientes dormindo no chão etc.
“Há diversas questões na desinstitucionalização, como a dificuldade de integração na Rede de Saúde Mental, relacionamentos familiares fragilizados e ainda mais afetados pela lógica manicomial/prisional, etc. Muitos terminam o tempo da medida de segurança e continuam no hospital por não terem para onde ir e/ou condições sociais que lhe deem sustentabilidade”, completou.
Rafael Dias, pesquisador da Justiça Global, apresentou o relatório do Hospital Henrique Roxo, no qual foram realizadas duas visitas em agosto de 2009. Ele também destacou a dificuldade de integração na rede e com a família. “O Hospital recebe internos de todo o estado e, muitas vezes, é muito longe para a família visitar. Além disso, o contato com a Rede de Saúde Mental do município de origem é mais complicado”. Também foi constatada a falta de assistência jurídica.
Por outro lado, Rafael afirmou que alguns avanços já vêm sendo implementados, mas ainda há muito a ser feito. “Há projetos efetivados, como a criação de duas bibliotecas, grupo de teatro, oficinas de artesanato, projetos de alfabetização etc. Mas, apesar dos esforços dos trabalhadores, vimos violações de direitos humanos que são próprias da lógica manicomial”.
Por fim, Flávia Freire, da ARP, apresentou o relatório do Hospital Roberto Medeiros, cuja visita ocorreu em 23 de setembro. Segundo ela, a situação não diferiu muito das outras unidades. “Havia lixo aparente, iluminação e ventilação ruins, infiltrações, enfermarias em condições precárias de conservação e higiene, sujeira. Além disso, havia falta de infraestrutura e de escolas, escassez de material de higiene e falta de capacitação e acompanhamento psicológico dos profissionais”.
Flávia afirmou ainda que o grupo não teve acesso aos profissionais, como psiquiatras, psicólogos e farmacêuticos. “Não conseguimos conversar com eles; as portas estavam todas fechadas. Mas tivemos acesso a alguns prontuários e vimos que há pouco acompanhamento dos pacientes”.
Respostas dos gestores
Foto dos palestrantes Marcos Argolo, Wilma Mascarenhas, José Augusto Viegas, Jota de Souza Tomaz e Tânia Kolker.
Marcos Argolo, Wilma Mascarenhas, José Augusto Viegas, Jota de Souza Tomaz e Tânia Kolker, na sequência, responderam aos relatórios apresentados.
Em seguida, a palavra foi aberta aos diretores das unidades presentes nos relatórios e à Coordenação de Gestão em Saúde Penitenciária.
Representando o Hospital Henrique Roxo, o diretor Marcos Argolo afirmou seu compromisso contra esse modelo de atendimento e afirmou que um dos problemas é que a lógica manicomial permanece. “Talvez eu preparasse um relatório ainda pior, pois após anos trabalhando nesses hospitais, vemos mais coisas do que vocês conseguiram ver em duas visitas. Para mudarmos essa lógica, precisamos de parcerias”.
José Augusto Viegas, diretor do hospital Heitor Carrilho, falou que seu objetivo é a “desospitalização responsável”. “Esse é o momento de assumirmos as dificuldades. Ressaltamos nossa posição consolidada pelo momento histórico da Reforma Psiquiátrica: nos tornaremos um hospital de desinternados. Precisamos garantir a assistência pública de qualidade superando estigmas. Temos que superar o estigma de um lugar com troca zero”.
Jota de Souza Tomaz, diretor do Hospital Roberto Medeiros, também declarou que a unidade tem rediscutido o modelo de Saúde Mental. “Essas visitas não poderiam ter vindo em um momento mais salutar. Mais do que um espaço de críticas e apontamento de problemas, esse espaço pode ser de enfrentamento, mudanças e parcerias, para que tenhamos um novo modelo nos hospitais e no Sistema como um todo”. Segundo ele, essa mudança já vem sendo implementada, já que, de 170 internos em 2005, atualmente encontram-se na unidade 58.
Finalizando a mesa, Tânia Kolker, da Coordenação de Gestão em Saúde Penitenciária, apresentou um histórico dos manicômios judiciários, com os marcos legais. “O Regulamento de 1921 traz a indicação de internação em manicômios judiciários apenas para os que sejam apontados como perigosos à segurança pública. O Código Penal de 1940 considerava os portadores de transtorno mental isentos de pena e também determinava a internação em manicômios judiciários dos que fossem presumidos perigosos. Na Reforma de 1984, reafirma-se a perspectiva custodial e os loucos infratores têm que cumprir medida de segurança em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. É interessante ver que toda essa legislação é anterior à Constituição de 1988 e viola vários direitos constitucionais”.
Apesar de diversas iniciativas anteriores nesse sentido (como a a criação do SUS), a construção da nova política de Saúde Mental começou efetivamente a partir de 2000. Em 2001, foi promulgada a Lei 10.216, que trouxe a Reforma Psiquiátrica. Segundo Tânia, esse legado de 80 anos.
Foto da apresentação do Teatro do Oprimido – Grupo Liberarte.
Foto da apresentação do Teatro do Oprimido – Grupo Liberarte.
O Teatro do Oprimido – Grupo Liberarte apresentou a peça de teatro-fórum “Anseios por liberdade”.
Foto da apresentação do grupo de pagode formado por usuários.
Apresentação de um grupo de pagode formado por usuários.
Concluindo, a gestora trouxe propostas para a reestruturação do modelo de atendimento em Saúde Mental nos ambulatórios e hospitais psiquiátricos da SEAP. “Evitar sempre que possível a internação em hospitais ou restringi-la ao menor tempo possível; viabilizar a desinternação dos pacientes em suporte familiar e garantir a continuação da assistência; reestruturação do modelo de atendimento ao dependente químico; e intensificação do diálogo com a Vara de Execuções Penais, Ministério Público e Defensoria Pública”.
Seguindo-se à mesa, houve uma apresentação do Teatro do Oprimido – Grupo Liberarte, com a peça de teatro-fórum “Anseios por liberdade”. A técnica do Teatro do Oprimido é a de contar um caso real que retrate uma situação com oprimidos e opressores para, em seguida, pessoas da plateia entrarem no lugar dos personagens e mudarem os rumos da história – o que eles chamam de “expectatores”. A trama girava em torno de um hospital de custódia, mostrando os desafios diários de pacientes, psicólogos, assistentes sociais, defensores públicos, agentes penitenciários e gestores.
Atração cultural seguinte foi um grupo de pagode formado por usuários.
Manicômios Judiciários: Desafios e Alternativas
A última mesa do evento abordou os desafios e alternativas aos manicômios judiciários e teve coordenação da advogada Renata Lira, da ONG Justiça Global. Martinho da Silva, responsável pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, falou sobre a medida de segurança no contexto desse plano. Segundo ele, uma Portaria foi criada em 2003 para que o SUS chegasse ao Sistema Penitenciário, o que inclui os hospitais de custódia. “Hoje, 4.500 pessoas cumprem medida de segurança nesses hospitais no país. Temos que evitar que o hospital de custódia seja o destino necessário de pessoas em medida de segurança, evitando o inchaço dos hospitais e apostando na reinserção social dessas pessoas”.
De acordo com Martinho, o plano foi criado para fazer frente aos problemas estruturais do Sistema Penitenciário, como superlotação e insalubridade. “Esse plano tem como pressuposto a interdisciplinaridade. A Saúde não é autossuficiente”, completou. Ele colocou ainda que as equipes de saúde cadastradas no Plano têm como foco a saúde dos presos ou pacientes. “Apesar da demanda para realizar perícias, se a equipe for cadastrada no Plano, ela não tem função pericial. A ideia é que a população penitenciária seja incluída no SUS”.
Haroldo Caetano, promotor de Justiça do estado de Goiás, apresentou o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI – GO). “Desde a Lei 10.216/2001, o Brasil não tem base legal para ter manicômios judiciais. Ou seja, há oito anos, os manicômios judiciais funcionam na ilegalidade. Hoje, são basicamente espaços de tortura”, declarou.
Ele explicou a mudança na forma de ver as medidas de segurança com a Lei de 2001. “Há dois tipos de medida de segurança: o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, para práticas de crime punidas com reclusão, e o ambulatório, para crimes punidos com detenção. Ou seja, o que determina a medida era a natureza do crime. Na releitura da Lei da Reforma Psiquiátrica, a internação, em qualquer modalidade, só é indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. A finalidade permanente é a reinserção social do paciente e o que determina a medida não é a natureza do crime, mas a necessidade da pessoa”.
Nesse contexto, o PAILI foi criado para cuidar dos casos de medida de segurança, o que, segundo Caetano, foi facilitado por Goiás não possuir manicômios judiciários. “O PAILI faz a interface entre o Sistema de Justiça e a Rede de Saúde Mental, para onde os pacientes são encaminhados. Assim, o paciente não fica submetido ao juiz para sua medida terminar; as equipes de saúde têm plena autonomia. O PAILI é um projeto alternativo aos manicômios, que já não existiam e não podiam ser construídos devido à Lei 10.216. No Rio, vocês têm um desafio maior, que é o de acabar com os manicômios que já existem”.
Encerrando o evento, foi aberto um debate entre os convidados e os participantes. Uma das questões surgidas foi o exame criminológico, que vai contra o Plano explicado por Martinho, já que é uma prática pericial. Também foram abordadas questões como a cultura da vingança presente no Brasil, que dificulta a Reforma, e a falta de estruturação da Rede de Saúde Mental em muitos municípios.
Texto e fotos: Bárbara Skaba
10 de dezembro de 2009