Na sexta-feira, dia 27 de abril, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), em parceria com o Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS-7ª Região) realizou o evento Depoimento “Sem Danos”: O que você pensa sobre isso? O evento, que contou com a participação de profissionais da área de Psicologia, Direito e Serviço Social, teve como objetivo discutir a atuação das equipes técnicas no sistema judiciário e a possível implantação do projeto Depoimento Sem Dano nas Varas de Justiça do Rio de Janeiro.
O Depoimento Sem Dano (DSD), projeto implantado na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre (2ª VIJ – Porto Alegre), em maio de 2003, com o intuito de evitar que a criança ou adolescente vítima de abuso sexual passasse por mais de uma inquirição durante o processo judicial, introduz recursos como câmeras filmadoras e equipamentos de gravação em audiências. O projeto tem como principal objetivo promover a proteção psicológica da criança vítima de violência sexual, evitando seu contato com o acusado e a repetição de interrogatórios.
Nas audiências realizadas no sul do país são os psicólogos ou assistentes sociais os responsáveis pela inquirição das vítimas. Através de um ponto eletrônico, as perguntas do juiz, promotor e advogado de defesa são passadas ao profissional da área psicossocial, que as repassa à criança, de forma considerada mais coerente e adaptada ao seu universo. Em vez de inquirida por mais de uma pessoa, a criança ou adolescente é ouvida em uma sala reservada, evitando o enfrentamento com o acusado e a presença de advogado de defesa ou do próprio juiz.
Os debates realizados entre as mesas, assim como a participação do público presente, mostraram que há um desconforto entre assistentes sociais e psicólogos da área jurídica em relação à suposta implantação do DSD no Rio de Janeiro. As principais objeções apresentadas dizem respeito ao caráter “sem dano” do depoimento e à sua metodologia — que consistiria em uma interferência tanto na atividade de assistentes sociais, como na prática psi.
De acordo com Eliana Olinda Alves, psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a inquirição à vítima compete à área policial ou jurídica, não é papel do psicólogo atuar em tal procedimento nos processos. Segundo ela, o Direito busca uma verdade inconteste, em que não se pode errar. Para Eliana, parece haver uma confusão quanto à natureza de trabalhos

O evento Depoimento “Sem Danos”: O que você pensa sobre isso? contou com a participação de profissionais da área de Psicologia, Direito e Serviço Social para discutir a atuação das equipes técnicas no sistema judiciário e a possível implantação do projeto Depoimento Sem Dano nas Varas de Justiça do Rio de Janeiro.
interdisciplinares, pois em vez de atuar como psicólogos, os profissionais estariam trabalhando em funções que se caracterizariam como extensões do juiz. A psicóloga aponta para o perigo de anulação entre as diferenças da entrevista característica do Depoimento Sem Dano e a entrevista característica da consulta psicológica.
Uma certa confusão entre procedimentos do Direito e da Psicologia também é apontada por Gloria Vargas, Mestre em Serviço Social e assistente social do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: segundo ela, no Sistema Judiciário de hoje, haveria um processo de subordinação entre os saberes, sendo o Direito a área de conhecimento ainda situada no topo de uma hierarquia: “Isto se dá através de procedimentos sutis, sofisticadíssimos, que têm relação com a própria juridiciação da vida social. O Depoimento Sem Dano me parece estar ligado a um conjunto de outros programas: a Justiça Terapêutica, a Justiça Negociada, entre outros. Um modelo que tem influência no modelo norte-americano, dos anos oitenta”.
Para a promotora de justiça Carla Carvalho Leite, que atua no Rio de Janeiro, em vista da ineficiência em que se encontra o atual sistema jurídico do país, o DSD é uma saída positiva: “No sistema jurídico de hoje o Depoimento Sem Dano é uma saída sim. Não é da atribuição do juiz, do promotor ou do advogado, perguntar à criança sobre o abuso, ele não tem competência, não tem técnica de entrevista, não sabe usar as palavras da criança”. Para ela, nem mesmo o assistente social seria o profissional adequado para a inquirição da criança: “Acho que quem tem competência para o DSD é o psicólogo, pois é ele quem tem conhecimento sobre abuso”, afirma Carla.
A assistente social Glória Vargas discorda da promotora, chamando atenção para o lugar dos profissionais da área psicossocial: “Aquele lugar, no DSD, não é do psicólogo, não é também do assistente social. Eu não sei de quem seria. Eu acho que, mesmo na questão do abuso sexual, não é do assistente social ou do psicólogo a tarefa. Mas é de qualquer profissional que se capacite apropriadamente para lidar com esta questão. É um debate é muito profundo, não estamos apenas dizendo que negamos nossa participação. A questão não é esta. Nós queremos participar da constituição deste processo, assegurando, em primeiro lugar, a proteção da criança e, evidentemente, a preservação dos espaços profissionais, com seus princípios internos, com seus conteúdos éticos”.
A preocupação com o fato de psicólogos e assistentes sociais atuarem apenas como intermediadores entre as demandas do processo e as perguntas do juiz também foi colocada por muitos dos presentes como “atuações-marionete”.
A promotora Carla Leite defendeu o Projeto, afirmando que ele tem como vantagens permitir que a criança seja ouvida em um ambiente mais adequado: “Ferem-se os direitos fundamentais da criança quando ela não é ouvida em um ambiente acolhedor. No Depoimento Sem Dano a criança não vê o acusado, não corre o risco de ouvir perguntas inadequadas da defesa. Muitas vezes o juiz indefere as perguntas colocadas pelo advogado, mas se a criança se encontra no mesmo espaço que este advogado, não adianta o indeferimento, a pergunta já foi feita, o dano já foi causado”, disse a advogada.
De acordo com Carla, o DSD tem a vantagem de garantir o direito de fala à criança: “Negar a oitiva, dizendo assim que a estamos protegendo, não seria isso um preconceito com a criança? Eu gostaria de colocar esta questão aqui. Todos nós temos preconceitos, operadores do direito, psicólogos, assistentes sociais. Eu gostaria de trazer esta reflexão: será que negar o direito de ser ouvida não seria um preconceito com a criança?”, reforçou Carla.
Gloria Vargas criticou a interpretação de um dos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente: “O problema da violação da autonomia profissional é um pouco generalizado. O centro da nossa questão não é a autonomia profissional, é o problema com a criança. O ECA estabelece o direito de que a criança seja ouvida. Quando o ECA coloca isso, qual é o direito? É no sentido do seu interesse”. Gloria afirmou que o direito da criança deve ser garantido em casos como o de separação dos pais, em que a criança tem o direito de voz, decidindo com quem deseja ficar: “Nesse sentido a palavra da criança é absolutamente decisiva. No caso, dizer que este direito [de oitiva, garantido pelo ECA] é o direito que também está assegurado no momento em que a criança é chamada como testemunha… Me parece que a gente está confundindo um pouco as coisas”, criticou.
Assistentes sociais e psicólogos apontaram autoritarismo em Varas de Justiça
Durante o evento também foram discutidas as relações entre as equipes interdisciplinares presentes no âmbito judiciário. Assim como em relação à prática do Depoimento Sem Dano, os profissionais da Assistência Social e Psicologia afirmaram haver um mal-estar permeando o trabalho que desempenham junto aos profissionais do Direito. Psicólogos e assistentes sociais presentes criticaram o comportamento marcadamente opressor, segundo eles, característico dos chamados “operadores do direito”.
Wanderlino Nogueira, procurador de Justiça aposentado e Consultor da ANCED-DCI (Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – Seção Brasil do Defense for Children International) abriu a mesa, coordenada pela psicóloga Heliana Conde (CRP 05/1169), professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. De acordo com Wanderlino, o Direito, no Brasil, se situa em um jogo em que se opõem práticas hegemônicas e contra-hegemônicas, sendo o Direito, marcado por práticas de hegemonia.
“Precisamos acabar com esta expressão cunhada atualmente: ‘operadores do Direito’. Quem opera o Direito é quem o aplica. No dia a dia, somos todos nós que aplicamos o Direito”, afirmou Wanderlino. Segundo ele, assim como existe um saber psi, existe um saber “jus”, sendo necessário integrá-los.
A psicóloga Erika Santos (CRP 05/20319), do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também criticou a falta de integração entre os saberes psi e jurídico: “No Direito, mais do que o saber, existe uma ordem que é do poder. Quem atua no Judiciário assume uma postura que é excludente. É impressionante como isso parece entrar pelos poros!”, criticou Erika. Segundo ela, o Direito é um saber que acaba digerindo outros saberes: “Ele desempodera outros saberes e, ao lado deste desemponderamento que o Direito produz, nós acabamos enfraquecendo a nossa parte, a gente emudece, mimetiza o Direito, com práticas reacionárias, prepotentes”, criticou.
Andreia Pequeno, presidente do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro, também criticou a hierarquização presente dentro de Varas de Justiça do Rio: “O Judiciário é uma instituição conservadora, hierarquizada e comprometida com interesses de classe. Temos que parar para pensar nosso papel dentro deste contexto”.
Assim como Wanderlino, Andreia criticou um comportamento conservador e hegemônico dentro do sistema judiciário: “Quando a gente define que um menino deve ser aprisionado dentro de uma instituição do DEGASE, não acho que aí estão sendo cumpridos os Direitos da Criança e do Adolescente. Vamos ver a cara desta população presa: ela denuncia preconceito de raça, de etnia. Eu nunca atendi a um menino de classe média”, disse Andreia.
De acordo com ela, o trabalho interdisciplinar ainda não é realizado de fato nas Varas de Justiça, estando o trabalho de psicólogos, juristas e assistentes sociais ainda fragmentado: “Hoje a organização do trabalho parece pressupor a importância do nosso trabalho, mas isso ainda se dá de forma estanque. Acho que a falta de diálogo prejudica o trabalho da equipe. Construir coletivamente é muito mais do que fazer a soma das partes”, afirmou.
Wanderlino também criticou a falta de diálogo nas Varas de Justiça: “Com exceção da capital, em todas as comarcas o juiz decide sem ouvir ninguém. Além disso, são raras as Varas de Infância e Juventude que têm equipes técnicas. No Ceará, por exemplo, nenhuma tem equipe técnica”, disse. O procurador afirmou que muitas das equipes técnicas existentes não fazem trabalho de assessoramento: “O assessoramento implica diálogo. Fora disso, o que existe é perícia”. “Concordo com o Wanderlino — disse Andreia — esta perspectiva de assessoria ainda não pegou. Nós devemos ter a ousadia de provocar o judiciário e colocar em prática o que está posto na lei”. Erika ainda falou que o fato de as equipes técnicas serem compostas por psicólogos e assistentes sociais também é outro fator a ser questionado: “O fato de excluirmos outros profissionais já é significativo — nós escolhemos os saberes que vão atuar aí”.