A 15ª Mostra Regional de Práticas em Psicologia, ocorrida entre os dias 28 e 30 de julho, no campus Tijuca da Veiga de Almeida, promoveu a Conferência de Abertura com o tema “Psicologia, Clínica e Relações Étnico-raciais”, com Jesus Moura (CRP 02/4617), psicóloga Clínica Antirracista, mestra em Psicologia pela UFPE, coordenadora nacional da Anpsinep e conselheira da atual gestão do CFP, docente do Curso de Psicologia da Fafire – Faculdade Fracinetti do Recife; e Abrahão Oliveira (CRP 05/39267), monankisi no Lumyjacare Junsara, docente do Instituto de Psicologia – UFF e coordenador do “Kitembo – Laboratório de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira”. A mediação foi de Thaís Lourenço (CRP05/62992), pós-graduada em Direitos Humanos, Saúde e Racismo pela FIOCRUZ, colaboradora do Eixo de Relações Raciais da CRDH – Comissão Regional de Direitos Humanos – do CRP-RJ, cofundadora do Projeto de Relações Raciais Sankofa na UNISUAM-R, co-coordenadora da ANPSINEP-RJ.
Thais abriu a Conferência, emocionada, “é um prazer estar aqui nesse momento, compondo essa mesa com pessoas que nos inspiram, que estudamos, que lemos. Estar nesse evento presencial dá um quentinho no coração, depois do que passamos com o afastamento do distanciamento social. Participei de grupos de estudo com o professor Abrahão e pude estar na presença de Jesus, no CRP. Vai ser uma honra poder compartilhar experiências com vocês. Quando falamos de Psicologia, não podemos falar apenas da diversidade sem pensar na questão racial, no atravessamento do racismo”.
Abrahão contextualizou sobre o racismo e o silenciamento das questões raciais no ambiente acadêmico da Psicologia: “Não havia espaço de pertencimento para pessoas negras na Psicologia. Não havia nenhuma discussão que trouxesse algo a respeito do racismo e dos seus efeitos em termos de sofrimento em si. Nada na universidade conversava com a gente negra e seus movimentos, suas lutas, suas questões sociais ou psicológicas. Todas as teorias psicológicas vinham e continuam vindo do estrangeiro, e aqui, continuavam e continuam a reprodução da linguagem, da estética, dos valores, de suas origens e de sua identidade. A deslocalização e o vazio que um jovem negro experimentava e ainda experimenta não é pequena. O repertório cognitivo para enunciar sentimentos concernentes à violência da racialização da sociedade era quase inexistente. Imaginem o mal estar de um jovem negro, o sentimento de inadequação, de não achar lugar. Eis o estado psicológico do aturdido, frequente entre os descendentes dos que vieram da África”. “Era necessário criar modos de sobreviver, de resistir, de reexistir na nova terra. Os que vieram da África e seus descendentes estavam sem lugar e sempre deslocados. Vocês já ouviram falar do Banzo? O sentimento intenso de saudade da África, capaz de impossibilitar a existência das pessoas negras para o trabalho, para a família, para o lazer. Há um livrinho sobre Cruz e Sousa e Paulo Leminski que toca um pouco do tema do banzo, pois o regime escravista e as sociedades europeias eram, e ainda são, avassaladoramente destrutivos nos sentidos da vida dos grupos negros. No campo da produção do valor, após a abolição de 1888, era necessário, para o projeto de Brasil, eliminar negros e indígenas. Levá-los ao abandono e à fome foi uma linha estratégica do Estado. Mas o extermínio não é apenas uma questão de economia e de produção de valor, há também a dimensão do gozo, do desfrute dos corpos das pessoas negras, de ver o outro se estatelar em miséria espiritual, econômica e cultural. A Psicologia, para cuidar de nossa gente, precisa partir daí, de onde está a nossa dor”, ponderou o psicólogo e professor.
Jesus Moura dialogou com que foi trazido por Abrahão: “O sentimento de não estar só é muito importante, porque muitas das coisas que o Abrahão trouxe desse ‘não lugar’ que nos é colocado tem muito a ver com a necessidade de nos isolar para que percamos a força, o referencial e a nossa identidade. Então, é preciso fazer um movimento com pessoas que são semelhantes a nós, e com pessoas que são parceiras das nossas lutas também”.
“Ter que se esforçar demasiadamente tem sido uma queixa contínua e frustrante, chega a um esgotamento, a um limite, porque é cobrado aquilo que não é humano. Essas afirmações fortalecem a ideia de que as pessoas vencem unicamente, desprezando todo e qualquer efeito que um ambiente racista exerce na vida de uma pessoa negra. No que diz respeito ao sofrimento que se contrapõe a obtenção da felicidade, duas definições aparecem: uma de sofrimento negativo ao vivenciar desprazer, e o sofrimento positivo na busca do prazer e da felicidade. Nesse caminhar da construção das identidades e das relações raciais, a busca da felicidade muitas vezes aparece pela necessidade de se fortalecer como sujeito e buscar essa construção desse eu real. O sofrimento ameaça o nosso eu real em três dimensões: o nosso corpo, por exemplo as exigências do corpo extremamente sexualizadas, além do uso excessivo da sensualidade feminina como única forma de se colocarem em alguns espaços sociais”.
“O mundo externo é a outra dimensão, que é aquilo que vem contra nós com força de destruição impiedosamente esmagadora, esse racismo estrutural que nós conhecemos. E os relacionamentos, a parte miúda do processo que está no racismo relacional, no dia a dia, nas relações, nas expressões, nos olhares, nos comentários. O sofrimento pelo qual nos referimos como decorrentes do racismo é que se expressa em três formas de ameaça. O racismo se expõe frequentemente nas situações relacionais. Por vezes pode se entender como, talvez, a mais danosa das ameaças”, continuou Jesus.
E, por fim, “são incapazes de perceber o racismo no seu ambiente de trabalho e de militância também. (…) ’Chego a dizer que não reprovo estudantes negros com receio de ser acusado de racismo’ essa é uma afirmação recente, que fiquei chocada ao ouvir. Isso é inadmissível. Estes são exemplos que foram expressos por psicólogas e psicólogos, e foram verbalizados em espaços diversos da Psicologia. A construção das relações raciais mantém ainda um movimento de silenciar, deslegitimar a existência do racismo, principalmente quando o fato chega muito perto dessas pessoas. (…) Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia as nossas vozes. É essa a Psicologia que queremos? Se queremos uma Psicologia ética, ela tem que ser antirracista. Para ser antirracista, tem que olhar para si primeiro, se permitir, se afetar com o sofrimento de uma pessoa negra. E estudar, estudar e estudar”, finalizou, contundente, Jesus Moura, propondo uma grande reflexão sobre a Psicologia que queremos construir.
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